Chico Buarque completa 80 anos entre música, literatura, teatro, cinema e futebol

Em seis décadas de carreira, compositor foi de ídolo romântico a líder engajado. Relembre momentos simbólicos de sua obra.


Foto: Mauro Pimentel/AFP



O tempo passou num instante, e Chico Buarque completa 80 anos nesta quarta-feira (19.06). Uma das referências centrais da música popular brasileira desde 1965, ele se expandiu em várias direções ao longo de seis décadas de obra e carreira. Venceu festivais da canção, atuou no cinema, apresentou programas de TV, escreveu romances, criou peças de teatro para adultos e para crianças, fez trilha sonora para balé, fundou um time de futebol, venceu o Prêmio Camões de literatura (em 2019)… Não bastasse tudo isso, destacou-se de seus pares por trazer a participação política para o centro das canções, e por isso se tornou símbolo maior da resistência à ditadura de 1964 no campo da cultura popular.

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Revelado na era dos festivais como ídolo romântico e autor de “A banda”, ainda aos 22 anos, Chico se reinventou no ano seguinte com a engajada “Roda viva”, que serviria de molde para as canções, as peças teatrais e os romances fortemente combativos do autor nos anos 1970. Em 1984, compôs o hino da redemocratização “Vai passar”, e a partir daí sua música passou por nova metamorfose. Tornou-se mais abstrata, menos política, mais próxima da bossa nova do mestre Tom Jobim, menos calcada na realidade que no sonho. O mesmo processo se deu em sua literatura, retomada com pulso a partir de Estorvo (1991), resultando numa série de romances habitados por perplexidade, alucinação, sonhos e pesadelos.

A obra de Chico Buarque soma momentos altos em múltiplas áreas. Entre muitos, podem-se citar o disco Construção (1971), as peças teatrais musicais Calabar (proibida pela censura militar em 1973) e Ópera do malandro (1979), a peça infantil Os saltimbancos (1977), o balé O grande circo místico (em dupla com Edu Lobo, 1983), o romance Leite derramado (2009)…

Acompanhe abaixo alguns flagrantes simbólicos da trajetória desse artista e pensador:

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A foto da capa

Em 1993, numa canção do álbum Paratodos, Chico trouxe a público uma história inusitada de sua adolescência. Nascido numa família de intelectuais, é filho do historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, primo em segundo grau do dicionarista Aurélio Buarque de Holanda e irmão das cantoras Miúcha, Cristina Buarque e Ana de Hollanda. À parte a origem burguesa, o compositor flertou com a vida marginal antes de se tornar estudante de arquitetura e urbanismo na USP. Aos 17 anos, foi preso e fichado ao participar com amigos do roubo de um carro, com o objetivo prosaico de “dar umas voltas”. Com tarja preta escondendo os olhos azuis, estampou a capa do jornal Última hora, em fotos que 32 anos mais tarde ele estamparia, sem tarjas, na capa de Paratodos.  

Chico Buarque e os festivais

Chico Buarque entrou na era dos festivais pela porta da frente, subindo ao pódio em três anos consecutivos. Em 1966, sua “A banda”, interpretada por Nara Leão, seria a vencedora isolada do II Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record, mas ele exigiu que fosse decretado o empate com outra favorita, “Disparada”, composta por Geraldo Vandré e cantada por Jair Rodrigues. Em 1967, a politizada “Roda viva” conquistou o terceiro lugar. Em 1968, por fim, veio a vitória definitiva com “Sabiá”, composta ao lado de seu mestre e influenciador Tom Jobim. A canção de exílio defendida pelas cantoras Cynara e Cybele recebeu a mais sonora vaia da história dos festivais, por ter derrotado na fase nacional a favorita da plateia, o hino engajado “Pra não dizer que não falei das flores (Caminhando)”, de Vandré. Em 1969, Frank Sinatra gravaria “Sabiá” em inglês.

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Chico Buarque, em Roma, em 1969 Foto: Mondadori Portfolio/Getty Images

O autoexílio na Itália

Acostumado a visitar a Itália com a família desde os 8 anos, Chico optou pelo país europeu quando teve de partir para o autoexílio em 1969, na decretação do AI-5. Morou e trabalhou em Roma por 14 meses com a então esposa, a atriz Marieta Severo. Ali, ele lançou Per un pugno di samba (1970), um surpreendente álbum ao lado do maestro italiano Ennio Morricone, notório autor de trilhas sonoras de filmes de faroeste e inúmeras produções hollywoodianas. Cantado em italiano, o LP trazia versões orquestradas de “Roda viva”, “Sonho de um carnaval” e “Samba e amor”, mas passou em branco pelo público.

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Cinema e política na obra de Chico Buarque

De volta ao Brasil, Chico assumiu sua face mais feroz a partir do samba “Apesar de você” (1970), censurado e recolhido das ruas, e do álbum Construção (1971). Ao longo da década de 1970, idealizou uma coleção de canções de confronto direto com a ditadura militar, como “Deus lhe pague”, “Construção” (1971), “Cálice” (com Gilberto Gil, censurada em 1973 e liberada em 1978), “Jorge Maravilha” (1974, afronta ao general-presidente Médici, assinada sob o pseudônimo Julinho da Adelaide para driblar a censura), o samba de anistia “Feijoada completa” (1978), “Geni e o zepelim” (1979)… Em 1972, iniciou seu vínculo com o cinema, compondo a trilha sonora do filme Quando o carnaval chegar, de Cacá Diegues, no qual estreou timidamente como ator, compondo uma trupe de saltimbancos nômades com Nara Leão e Maria Bethânia. “Tô me guardando pra quando o carnaval chegar”, dizia o refrão da canção-tema, já vislumbrando no horizonte o encerramento da ditadura.  

O futebol

O sonho de infância e adolescência de ser jogador de futebol não se concretizou, mas Chico nunca se afastou do esporte, pelo qual se apaixonou sob influência da mãe, Maria Amélia, torcedora fanática do Fluminense. Para as horas de lazer, o compositor fundou em 1978 o time Politheama, pelo qual deram o ar da graça jogadores profissionais (como Pelé, Tostão, Zico, Sócrates e Romário) e diletantes recrutados entre colegas da música brasileira (Moraes Moreira, Alceu Valença, Fagner, Hyldon, Djavan). Até Bob Marley apareceu para jogar no campo do time no Recreio dos Bandeirantes, no Rio, durante sua passagem pelo Brasil em 1980. Chico também transformou a paixão esportiva em uma canção, batizada “O futebol” e lançada no álbum Chico Buarque (1989).

As mulheres 

Chico é célebre por retratar a alma feminina, por vezes em primeira pessoa, em canções como “Carolina” (1967), “Bárbara” (1973), “Mulheres de Atenas”, “Olhos nos olhos” (1976), “Pedaço de mim” (1978), “Folhetim”, (1979)… Atípica entre essas é “Angélica”, lançada em 1981, já num contexto de abertura política, e dedicada à estilista Zuzu Angel, que empreendeu uma luta incansável para denunciar a ditadura militar pelo assassinato de seu filho Stuart Angel, aos 25 anos, em 1971. “Quem é essa mulher/ que canta sempre esse estribilho/ só queria embalar meu filho/ que mora na escuridão do mar”, diz a letra de “Angélica”. Mãe também da jornalista Hildegard Angel, Zuzu morreu num acidente de carro, em 1976. Poucos dias antes, ela havia deixado um documento com Chico, no qual dizia: “Se eu aparecer morta, por acidente ou outro meio, terá sido obra dos assassinos do meu amado filho”. Em 1984, Chico se tornaria um dos artistas que lideraram o movimento Diretas Já, pela redemocratização do Brasil.

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Chico, em 2005 Foto: LLUIS GENE/AFP via Getty Images)

O mergulho na questão racial  

Chico foi levado a mergulhar mais fundo no problema racial brasileiro quando sua filha Helena teve dois filhos com o músico baiano Carlinhos Brown. Às voltas com a experiência de passear pela zona sul carioca com o neto Chico Brown, o artista refletiu sobre o racismo dito cordial do Brasil no romance Leite derramado (2009) e em canções da fase madura como “Subúrbio” (2006), “Sinhá” (2011) e “As caravanas” (2017). O narrador de “Sinhá”, incluída no álbum Chico, se define como “cantor atormentado, herdeiro sarará/ do nome do renome/ de um feroz senhor de engenho/ e das mandingas de um escravo/ que no engenho enfeitiçou sinhá”.

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