Jane Birkin, a musa eterna

Nas telas, na música e na moda, ela deixou sua marca de forma indelével. Confira a entrevista que a artista inglesa, que morreu aos 76 anos, em Paris, deu à ELLE na época do lançamento de seu último álbum.


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Foto: Nathaniel Goldberg



Atriz, cantora, modelo e, sobretudo, musa de mais de uma geração: a moda e as artes se despedem hoje de Jane Birkin. A artista foi encontrada neste domingo (16.07) sem vida em seu apartamento em Paris, aos 76 anos. A notícia foi confirmada pelo Ministério da Cultura da França. Nos últimos anos, ela enfrentava uma batalha contra o câncer. Além de estrelar filmes marcantes como Blow-up e dar a voz a hits como “Je t’aime moi non plus, Jane foi a inspiradora de uma das bolsas mais icônicas do mundo, a Birkin bag, da Hermès. Em reportagem publicada no volume 04 da ELLE Brasil, em maio de 2021, Jane fez graça sobre a fama que ganhou com o acessório: “O engraçado é que, nos países em que não me conheciam muito, passaram a me reconhecer por causa da bolsa. Em Nova York, dizem “a bolsa vai cantar””, contou ela, bem-humorada. Leia, a seguir, a entrevista que Jane Birkin deu à editora de cultura Bruna Bittencourt quando divulgava seu último álbum Oh! Pardon tu dormais…

Entrevista publicada na ELLE impressa, em maio de 2021

“Dei tantas entrevistas na minha vida, contei tantas anedotas, falei sobre quase tudo. Não sabia mais o que dizer. Mas tinha malas cheias de diários”, conta à ELLE Jane Birkin. Nos últimos anos, ela publicou dois compilados desses cadernos, Munkey diaries (2018) e Post-scriptum (2019). Em mais de 700 páginas, narrou sua vida entre 1957 e 2013.

Nessas seis décadas, Jane, 74 anos, se consagrou como a intérprete das canções lascivas de Serge Gainsbourg (1928-1991), como a atriz de mais de 70 filmes, que vão de Godard a suspenses de Agatha Christie, e como um dos ícones do estilo francês (apesar de ter nascido na Inglaterra). Além, claro, de ter sido eternizada ao batizar uma das bolsas mais famosas do mundo, depois de encontrar o presidente da Hermès em um voo e sugerir que criasse um acessório capaz de acomodar tudo o que ela precisava levar.

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“Acho que não há mais o que perguntar nas entrevistas porque está tudo nesses dois diários”, diz Jane. Mas o motivo – ou pretexto – da nossa conversa é um capítulo que não está em seus registros: seu mais recente disco, Oh! Pardon tu dormais… (Oh! Desculpe, você estava dormindo), talvez seu trabalho mais pessoal até aqui. Inspirado em um filme que ela escreveu na década de 1990, protagonizado por um casal e depois adaptado para os palcos, é seu primeiro álbum de estúdio em mais de dez anos. O trabalho tem Étienne Daho, fã da montagem teatral e uma referência do pop francês, como seu grande parceiro, enquanto as letras tomam emprestadas diálogos do filme/peça e até uma página do seu diário. Nas palavras da cantora – que hoje agradece por morar sozinha –, Oh! Pardon tu dormais… fala sobre a frustração de estar com alguém que não ama você ou não responde aos seus anseios.

Além de cantar sobre frustrações amorosas, pela primeira vez Jane fala de forma direta sobre a morte de sua filha Kate, fruto de seu casamento nos anos 1960 com John Barry (1933-2011), compositor do famoso tema de James Bond. Há sete anos, Kate caiu do quarto andar do prédio onde morava, em Paris. Em seu apartamento, foram encontrados antidepressivos – ela tinha um histórico de luta contra o vício em álcool e drogas e fundou um centro de apoio para dependentes em 1994. “Minha filha se lançou no ar/ E no chão, a encontramos/ Será que ela abriu a janela/ Só pra deixar ir embora a fumaça?/ Cigarros/ (…) Talvez seja um acidente/ Realmente estúpido/ Quem sabe?”, canta Jane em “Cigarette”, que ela conta ter escrito em um dia em que foi tomada pela tristeza, entre uma das apresentações da turnê do álbum Birkin/Gainsbourg: Le symphonique.

Nos últimos três anos, ela viajou pelo mundo com o show, em que canta canções do francês, acompanhada por uma orquestra e com o qual voltaria ao Brasil em 2018. Jane esteve no país pela última vez em 2009, em um tributo da Orquestra Imperial a Gainsbourg, com participação de Caetano Veloso. A apresentação de 2018 acabou sendo cancelada por problemas de logística, mas ainda podemos ter esperança de vê-la mais uma vez por aqui: quando a pandemia permitir, planeja voltar aos palcos.

Jane conta ter uma troca musical com suas outras duas filhas, também cantoras: Charlotte, fruto do relacionamento com Gainsbourg, nos anos 1970, e Lou, do casamento com o diretor francês Jacques Doillon, na década de 80. Ela diz ter dado a elas boa parte das peças de seu guarda-roupa. Revela sempre ter preferido roupas masculinas e hoje preza o conforto. A cantora conversou com a ELLE um dia depois do aniversário de Kate e pouco após Histoire de Melody Nelson, um dos álbuns reverenciados de Gainsbourg, do qual ela participa e estampa a capa, completar 50 anos. Em meio a um lockdown em Paris, ela não tinha queixas. “Parece indecente reclamar sobre qualquer coisa”, disse a respeito de sua vida em meio à pandemia.

Como foi escrever sobre a morte da sua filha de forma tão direta em “Cigarette”? Isso lhe ajudou a processar o luto?
Acho que não, porque provavelmente o que ajuda é o tempo e já se passaram sete anos. Mas, quando eu escrevi a música, me lembrei do lugar que a colocaram quando ela morreu, do seu rosto, do seu cabelo. Tudo voltou, não de uma forma assustadora, apenas de uma forma bem precisa. E pelo fato de cantar sobre isso, estranhamente, você se torna outra pessoa, o que significa que você se desapegou. E eu pude cantar todos os detalhes, desde que a encontramos – Charlotte, Lou, Roman, seu filho. Talvez pareça chocante para outras pessoas, mas o que eu vi foi tão terrível. Foi tão assustador não saber o que dizer ao seu filho, esperando que ele ficasse bem. E, realmente, cantar uma música sobre isso sete anos depois não me comove muito. A que me toca mais, claro, é a canção sobre o cemitério (“Ces murs épais”, Essas paredes grossas). Essa eu senti ainda ontem, seu aniversário, quando voltei ao cemitério com flores. Muitas pessoas perderam seu filho. Sei que não sou a única. Meu irmão perdeu seu filho em um acidente de carro, quando ele tinha 20 anos. E ele foi muito nobre em criar uma associação (a Anno’s Africa, que promove educação artística a crianças do Quênia e Malauí). Pensei que deveria fazer algo por Kate para tentar ajudar os alcoólatras e narcóticos anônimos, que acolhem aqueles que têm essa dificuldade. Pessoas que perdem seus filhos querem perpetuar a história deles.

Como cantora, como você acha que seu trabalho mudou desde 1969?
Desde a minha estreia, cantei os sentimentos de Serge. No começo, ele fez músicas para mim, como “Di doo dah”, “Mon amour baiser” e “Ex fan des sixties”. Elas eram charmosas, doces e engraçadas. E, então, eu o deixei. E elas se tornaram bem mais interessantes. Percebi que estava cantando a tristeza dele, sua dor, seu remorso, e eles eram mais interessantes do que os meus próprios sentimentos. Então, cantei “Amours des feintes”, “Fuir le bonheur de peur qu’il ne se sauve”. É Serge falando. Ele me deu músicas tão bonitas para cantar, que eram sobre sua dor. Era também estranho, porque era eu quem provocava aquela dor. Mas senti que era tudo o que podia fazer para ainda manter contato com ele, para ainda ser sua parceira, apesar de não estarmos morando juntos. O último álbum que ele escreveu, Amours des feintes (1990), foi para mim. Fui sua intérprete e acho que fui uma boa intérprete. Quando alguém lhe perguntou: “O que você gosta na Jane?”, ele disse: “Emoção”. Ele reconheceu que havia uma emoção na minha voz que traduzia suas letras perfeitamente. Fiquei honrada em ter isso. É por isso que nunca pude deixá-lo ir. Sei que tive as mais lindas palavras nas mais belas melodias.

Você gravou “Leãozinho” com Caetano Veloso no seu disco Rendez-vous (2004). Como essa parceria aconteceu?
Ah, mande-lhe meu amor. Fui ao show dele em Paris e o conheci depois. Aprendi freneticamente a dizer suas palavras, cujo significado eu não entendia. Foi tão adorável cantar com ele. Ele foi tão encantador! Que sedutor… É simplesmente adorável, pequeno, requintado. Me diverti muito. Tive muita sorte porque acho que ele não sabe o que significa para mim cantar com ele. Eu o vi cantando no filme de Almodóvar, Fale com ela (2002), que devo ter assistido umas seis vezes. Adoro esse filme. Me senti muito privilegiada.

Como você avalia sua carreira de atriz, de mais de seis décadas?
Eu admiro Charlotte Rampling e os atores que seguem e acham papéis que podem interpretar. Eu era muito limitada com meu sotaque inglês e, por ser um nome tão conhecido, era difícil interpretar uma avó ou uma ex-mulher e você realmente acreditar nisso. Acho que fui uma atriz crível quando fiz coisas como Je t’aime moi non plus, para Serge (Gainsbourg dirigiu Jane no filme de 1976 que leva o mesmo nome da famosa canção interpretada pelo então casal em 1969 e censurada em diversos países por causa de seu conteúdo sexual), filmes engraçados ou os de Jacques Doillon. Ele me deu papéis dramáticos para representar, como ser a filha de Michel Piccoli (ator) em La fille prodigue
(1981), coisas que as pessoas não imaginariam que eu pudesse fazer, mas fiz. Atuei em muitos filmes terríveis e em outros de que me orgulho muito (Jane foi premiada no Festival de Veneza e indicada a três Césars).

Jane Birkin e a moda

Você é um ícone da moda há décadas, mas não parece ter feito nenhum esforço para isso. Sempre foi algo natural para você?
Tenho usado calças masculinas. Tenho sorte de ter um monte de cashmeres, malhas Hermès. Charlotte me deu uma bela camisa masculina. Eu acredito em conforto. Vou lançar uma coleção-cápsula para a A.P.C., a marca francesa, para mulheres de 60 anos que querem se sentir confortáveis. Fiz um cashmere e calças de veludo cotelê bem folgados, um tênis e um casaco masculino, que são o que eu procuraria. Acho que roupas masculinas são provavelmente a solução porque você fica tão bem quanto os homens, ou pelo menos não tão terrível como eu, ao me vestir como uma mulher, de terno, blusinha, maquiagem e cabelo feito. Acho que fico com cara de O que terá acontecido a Baby Jane? (filme de 1962, em que uma envelhecida Bette Davis usa maquiagem pesada). É preciso tomar cuidado com a maquiagem depois de certa idade, pois ela faz você parecer assustadora. Sou a favor de tudo que faz você se sentir bem, feliz. Se alguém tiver alguma dica, sou grata. O smoking Saint Laurent é realmente o melhor em qualquer ocasião. Vou seguir uma dieta e tentar fazer exercícios para tentar entrar no meu terno Saint Laurent para meu show em maio.

O que você acha de ter sido a inspiração e ter batizado uma das bolsas mais icônicas de todos os tempos?
No começo, pensei “por que eu não ganho uma porcentagem disso?” Mas eu era muito ingênua na época e fiquei muito feliz que o presidente da Hermès quisesse fazer uma bolsa como a Kelly (bolsa da grife que ficou conhecida assim por ter sido usada por Grace Kelly, na década de 1950). Estava terrivelmente lisonjeada e muito orgulhosa de ter meu nome nela. Mas o engraçado é que, nos países em que não me conheciam muito – e por que me conheceriam? –, passaram a me reconhecer por causa da bolsa. Em Nova York, dizem “a bolsa vai cantar” (risos) ou “esta é a filha da bolsa”, sobre a Lou. Talvez, de uma forma engraçada, a bolsa tenha me feito algo bom. E dificilmente você terá uma bolsa melhor ou mais chique. Em países onde não me conheciam, talvez pelo fato do meu nome estar na bolsa, eles pensem: “Ah, ‘Jet t’aime moi non plus’, Blow-up ( filme de Michelangelo Antonioni, de 1966, em que Jane aparece nua) e a bolsa”.

O que lhe interessa na moda hoje em dia?
Adoro ir aos desfiles. É como ir ao cinema ou assistir a uma peça esplêndida e gastar ali 50
minutos. É muito estimulante. Eu costumava ir ver Saint Laurent, Celine, Hermès, claro. Adoro Dries Van Noten. Mas sempre gostei mais das roupas masculinas. Ainda assisto com interesse. Quando vejo algo realmente lindo, como um vestido de veludo preto, penso: “Uuuh!” Mas esses tempos se foram. Dei minhas peças a Charlotte e Lou porque sei que não vou usá-las novamente. Mudei para outra coisa. E acho que, quando você muda, começa a admirar as pessoas que fazem suas próprias coisas e conseguem se virar bem com elas. É o que pretendo fazer.

Olhando para trás, quais foram os momentos mais transformadores da sua vida?
Minha infância foi a época mais tranquila. Me senti muito segura por causa do meu irmão,
Andrew, e da minha irmã, Linda. Era tão divertido, até o sol parecia diferente. Talvez por ver
todos os filmes em super 8, as fotos… Depois, claro, ter minhas filhas, Kate, Charlotte e Lou. E conhecer Serge mudou minha vida. Era uma estrada que eu não teria percorrido. Se tivesse ficado na Inglaterra, o que teria acontecido? Não tenho ideia. Serge foi uma revelação.

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