Fevereiro de 2024. Uma guerra na Europa que já extrapola dois anos, outra, no Oriente Médio, com impacto mundial ainda incerto (fora todas que não estão nas principais manchetes do dia), ataques e contra-ataques no Mar Vermelho, aquecimento global com desdobramentos extremos – deslizamentos de terra, tufões, ondas violentas de calor, secas e inundações históricas –, e um grau de desigualdade social em crescimento constante nos países pobres. Tudo isso e mais um pouco na sequência de uma pandemia, cujas consequências reverberam na educação, na saúde mental, no mercado de trabalho e em outros setores da vida.
Que futuro esperar diante desse cenário sinistro, com perspectivas até de um não-futuro, com o processo de fim dos tempos na Terra em andamento? Para que estudar e investir numa carreira? Ou parar de comer carne se o mundo vai acabar de qualquer maneira?
“Não morreremos de velhice. Morreremos por causa das mudanças climáticas”, estampa um cartaz empunhado por uma jovem em reportagem do Washington Post intitulada “O fardo ambiental da geração Z”.
Toda a Terra reduzida a nada
A angústia com o futuro da vida na Terra já tem até nome: ecoansiedade, ou ansiedade climática. O assunto foi tema de um estudo publicado na revista The Lancet Planetary Health, que analisou o grau de ansiedade climática entre jovens de dez países, Brasil incluído. Entre as 10 mil pessoas de 16 a 25 anos ouvidas pelos pesquisadores, 75% consideram o porvir assustador e, para mais da metade (56%), a humanidade está “condenada”.
Mas será que há razão para essa visão apocalíptica, de fim do mundo? Cientistas atestam que sim: esses tempos sombrios são de altíssimo risco para a nossa espécie e para outras.
Entre as 10 mil pessoas de 16 a 25 anos ouvidas pelos pesquisadores, 75% consideram o porvir assustador e, para mais da metade (56%), a humanidade está “condenada”.
A obra é do antropoceno, um termo relacionado ao impacto das atividades do homem no meio ambiente, com efeito como as mudanças climáticas e danos irreversíveis causados pelo consumo excessivo de recursos naturais, vide os combustíveis fósseis, que estão até no centro da indústria da moda.
Por outro lado, é possível crer num “otimismo apocalíptico”, expressão usada pelo neurocientista Sidarta Ribeiro, fundador e professor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Em seu livro Sonho manifesto (Companhia das Letras), de 2022, ele defende o retorno aos conhecimentos dos povos originários como uma solução para reverter a atual catástrofe ambiental e social.
O caminho se encontra em “curar nossos piores instintos, nutrindo os melhores”.
Sidarta destaca a esquisitice própria do humano, animal paradoxal, que é violento e também altruísta. O cuidado com o outro é exemplar quando se trata das pessoas do seu círculo íntimo. Para os demais, resta a competição. Protegemos os de dentro, combatemos os de fora. O caminho se encontra em “curar nossos piores instintos, nutrindo os melhores”. Ou seja, sanar as partes doentes, como os sistemas patriarcal e o racismo, e honrar as nossas antigas tradições de cuidado com os outros.
Desde a pré-história, explica Sidarta, nossos ancestrais desenvolveram uma sofisticada ética do cuidado, baseada nos valores da atenção, da responsabilidade, da competência, da confiança… “Nossa raiz biocultural é violenta, mas também é amorosa, generosa, capaz de esmerados cuidados parentais e maravilhosa sociabilidade.”
Sem tempo para fechar os olhos
Outro tema que tem gerado angústia e teorias de eliminação humana na Terra, tipo sci-fi, é o uso cada vez mais massivo e sem controle do mundo digital. Feito por humanos e tal qual os humanos, ele é igualmente paradoxal: traz fantásticas e indubitáveis contribuições para a humanidade se informar e se conectar, mas pode gerar efeitos altamente perturbadores.
A aceleração do tempo na tela, o ir e vir constante de imagens e informações oferecidas freneticamente, novas, em pílulas, é obstáculo para a contemplação, o pausar, o aprender, o narrar, refletir, decidir e, por fim, concluir.
“As imagens inquietas não falam ou contam, mas sim fazem barulho. Frente a essas imagens ‘ameaçadoras’, não se pode fechar os olhos. O olho fechado é o signo visual da conclusão. Hoje, a percepção é incapaz da conclusão, pois ela zapeia pela rede digital sem fim”, escreve o filósofo e ensaísta sul-coreano Byung-Chul Han.
Em cinco ensaios curtos e poderosos, o autor do best-seller Sociedade do cansaço (Editora Vozes) faz uma análise da aceleração em que vivemos imbricados. O nome do livro, de leitura valiosa: Favor fechar os olhos: em busca de um outro tempo (Editora Vozes).
O tempo exigido pelos textos mais longos, complexos, profundos, realmente não sobrevive à correria desenfreada da era digital e seu inquieto filhote, a cultura do imediatismo. No Brasil, o segundo país onde as pessoas passam mais tempo na internet (nove horas e 30 minutos por dia), o texto mais longo lido por 66% dos alunos não passa de dez páginas.
Entre os demais sul-americanos da pesquisa, o Brasil lidera, com folga, o ranking de estudantes cuja última leitura do ano não ultrapassou uma página, segundo levantamento do Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional (Iede), em parceria com a plataforma Árvore e com base nos resultados de 2018 da prova do Pisa.
A habilidade de ler e interpretar não é uma graça dos deuses que cai do céu, mas o resultado de um circuito que os seres humanos começaram a criar no cérebro milhares de anos atrás, explica a neurocientista estadunidense Maryanne Wolf, autora de O cérebro no mundo digital – Os desafios da leitura na nossa era (Contexto).
O hábito digital da leitura rápida leva a pessoa a passar “por cima da argumentação, dos pontos mais sofisticados do texto, e receber menos da substância de pensamento que é importante para a análise crítica”, ressaltou Maryanne em entrevista à BBC News Brasil.
Perder a capacidade crítica, a capacidade de julgar, ponderar, decidir, pode até não implodir o mundo, ainda que seja duro pensar que talvez Trump ganhe novamente o botão bomba nuclear em ação, mas vamos ter uma vida mais empobrecida do ponto de vista existencial. Mais árida.
Os algoritmos, por meio de suas recomendações, decidem por nós sem percebermos. O experienciar vai para o ralo quando a nossa escolha é feita pela máquina. O ChatGPT redige um texto, faz um trabalho da faculdade, mas pode colaborar com o emburrecimento do humano e ter implicações nefastas no mercado de trabalho, com séries de plágios e carreiras sendo subjugadas – como o próprio jornalismo, vale ressaltar.
“Na verdade, existe um perigo existencial inerente ao uso da IA (inteligência artificial), mas esse risco é existencial no sentido filosófico e não apocalíptico”, escreve Nir Eisikovits, professor de filosofia e diretor do Centro de Ética Aplicada da UMass Boston, no site The Conversation. “A IA em sua forma atual pode alterar a maneira como as pessoas se veem. Pode degradar habilidades e experiências que as pessoas consideram essenciais para o ser humano.”
“Já que a IA faz tudo, a internet faz tudo, eu não preciso fazer nada. Então vou ficando cada vez mais impotente, cada vez com menos condições de pensar, de sentir.”
“A gente não sabe como vão ficar a mente humana e a capacidade de pensar no futuro”, afirma Ana Maria Stucchi Vannucchi, psicanalista e diretora científica da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
No entanto, ela alerta para o real perigo da terceirização da própria capacidade de pensar e decidir. “A tecnologia oferece um tipo de esperança milagrosa, um faz-tudo mágico, que acarreta a sensação de impotência. Já que a IA faz tudo, a internet faz tudo, eu não preciso fazer nada. Então vou ficando cada vez mais impotente, cada vez com menos condições de pensar, de sentir.” E pode ser que essa impotência venha disfarçada de um grande alívio, diz Ana Maria, e a pessoa se coloque no papel de quem não precisa ser sujeito no mundo.
No fundo, esse caminho funciona como uma defesa contra o sofrimento. “Sabe qual é o problema? Quando a gente não quer sofrer, a gente não pode ter prazer também. Se eu estiver anestesiado para a dor, eu também me anestesio para o prazer, para o prazer de existir. Estar vivo traz muita dor, mas também traz muita alegria.”
Ou seja, se negarmos a dor, aí mesmo é que estamos perdidos enquanto espécie. Em meio a tantas incertezas, fica mais uma dúvida: será que a atual e um tanto bizarra realidade não é uma oportunidade para enfim mudarmos o jeito de ser e de viver?