O áudio do WhatsApp, que ficou difícil de ouvir na velocidade normal, a tentação de dar uma olhada no celular durante o filme ou a série na TV, o instinto de rolar o feed depois dos dez primeiros segundos daquele vídeo no Instagram, ainda que ele seja interessante.
Andamos todos tão ocupados que não há outra solução a não ser acelerar tudo o que for possível e nos dividir em várias tarefas para ganhar tempo? Certamente não. Mas, segundo especialistas, estamos lidando com a “tiktokização da vida”.
O termo trata do impacto que tem no nosso dia a dia essa lógica do “rápido, simples e viciante”, que deriva da dinâmica da rede social chinesa e seus vídeos virais. Mas atinge a todos nós, inclusive quem não tem um perfil por lá, e acaba por direcionar a forma como se produz boa parte do conteúdo que consumimos e a quantidade de tempo com que interagimos com ele.
“A pandemia, com o aumento do tempo de tela a que fomos todos submetidos, pode ter sido um dos fatores a impulsionar o fenômeno”, explica a neurocientista Cristiane Furini, professora da Escola de Medicina da PUC-RS e coordenadora do Laboratório de Cognição e Neurobiologia da Memória do Instituto de Cérebro (InsCer).
Segundo a professora, a possibilidade de acelerar conteúdos pode nos levar a consumir mais informações no mesmo período, criando a sensação de que estamos ganhando tempo. O problema, afirma ela, é o que estamos fazendo com essa “economia”, já que esse trajeto, em geral, nos conduz de volta ao ponto onde tudo se originou: as redes sociais. “Surgem as perguntas: será que estamos mesmo ganhando tempo? E de qualidade? Ou será que essa sensação é ilusória? O que fazemos com essa economia é crucial. Estamos usando esse tempo para fortalecer nossos relacionamentos e cuidar da nossa saúde ou estamos apenas consumindo mais conteúdo?”
Acelera aí
A cultura já reflete este movimento: nas plataformas de streaming, é possível acelerar a velocidade de filmes e séries há alguns anos e a música entrou na onda. As sped-up songs, ou músicas aceleradas, se popularizaram no TikTok, quando, de maneira amadora, usuários começaram a fazer as próprias versões de músicas de sucesso, acelerando seu andamento.
Hoje, a hashtag #SpedUp tem mais de 36,1 bilhões de visualizações na plataforma chinesa. Artistas como Demi Lovato e Lana Del Rey já lançam as suas sped-ups, e o Spotify tem as próprias playlists dedicadas ao gênero. É comum, inclusive, que canções antigas em versões sped-up voltem às paradas após viralizar no TikTok, sendo apresentadas a um novo público, que nem conhece a versão original. É o caso de “Come as you are”, música lançada em 1991 pelo Nirvana, que voltou a fazer sucesso décadas depois no TikTok.
Para o produtor musical Daniel Ganjaman, que já assinou trabalhos de artistas como Criolo, Planet Hemp e BaianaSystem, as sped-up songs são só mais um reflexo do estilo de vida das novas gerações a influenciar o meio. “Isso aconteceu também com o funk de 150 BPM (150 batidas por minuto). O gênero acabou ficando super-rápido.”
Líder de negócios Spotify, Roberta Pate cita a velocidade como um vetor central para a plataforma em 2023. “O consumo de áudio de forma mais rápida explodiu. Nosso relatório global de tendências Culture Next mostrou que 40% da geração Z ouviu um podcast em velocidade acelerada no último ano e 58% acelerou músicas”, conta.
Ganjaman cita ainda a média de duração das canções, que vem diminuindo ao longo dos anos. “Hoje em dia, uma música de três minutos é considerada longa.” O produtor fala sobre a chamada economia da atenção, que trata o tempo humano como uma commodity escassa, pela qual os produtos culturais precisam competir. “Isso mudou muito a forma como a música está sendo produzida no mercado pop. Nos primeiros 15 segundos da faixa, alguma coisa tem que acontecer, porque a skip rate (a taxa de mudança para outra música) é altíssima. O ouvinte não vai ficar naquela faixa”, exemplifica.
As novas gerações também ouvem música fragmentada, dissociada do conceito de álbum, que norteou a indústria fonográfica desde os anos 1950. Para Ganjaman, o antes hegemônico formato de disco conserva mais importância para os criadores que para os ouvintes. “O público dá play no álbum como se fosse uma playlist, um apanhado de músicas. Só uma audiência muito fidelizada vai querer ouvir o disco inteiro, fazer uma análise, entender o conceito que amarra o começo, o meio e o fim do álbum”, defende.
Era uma vez o início, o meio e o fim
Jovens consumidores de produtos culturais vêm pulando de galho em galho por plataformas de streaming, muitas vezes alheios à lógica narrativa que preconizava o início, o meio e o fim. Essa avaliação está explícita na fala de gestores experientes do maquinário cultural. O consumo fragmentário é hoje uma inevitabilidade, como percebe o distribuidor de filmes Bruno Wainer quando vê sua filha de 11 anos assistir a uma obra audiovisual. “A geração de 10, 11, 12, 13 anos está cada vez menos interessada em assistir cinema naquela forma de uma hora e meia ou duas horas de duração”, constata Wainer, um dos donos da maior distribuidora brasileira de filmes, a Downtown.
“Os filmes-espetáculo ainda conseguem mobilizar e produzir algum resultado, mas as pesquisas indicam que as novas gerações não têm paciência (para longas-metragens). Quando sento com minha filha para ver um filme, ela decifra tudo numa velocidade espantosa, acha que já sabe como vai acabar e se desinteressa”, diz Wainer. “A linguagem preponderante está ultrapassada. É dificílimo para a narrativa clássica capturar a atenção.” Ele afirma que ir ao cinema não é mais um programa almejado, exceto em fenômenos esporádicos, como o filme Barbie. “Aí, quando isso acontece, minha filha assiste ao filme cinco vezes.”
A mesma impressão é compartilhada por Jeff Nuno, ex-gerente de relacionamento no escritório brasileiro da distribuidora virtual de música ONErpm, que hoje pilota sua própria empresa, a Lujo Network. A partir da Espanha, ele trabalha a distribuição virtual de fonogramas de artistas brasileiros de funk carioca, rap e piseiro. Nuno descreve o comportamento de crianças, adolescentes e jovens da geração TikTok: “Ligam num filme da Netflix, veem uma parte, acham que já entenderam, pulam para outra, vão saltando. Veem em cinco minutos um episódio de 30 ou 40 minutos”.
Além da aceleração de conteúdo, o uso do celular também vem impactando o formato dos filmes. Renato Marques, diretor de produção de séries como O mecanismo (2018) e do documentário Belchior – Apenas um coração selvagem (2023), vê como uma evolução natural essa adequação do mercado ao estilo TikTok. “Toda nova mídia quando se estabelece abala um pouco o status quo do mercado e a forma de pensar o audiovisual. Passei 20 anos vendo as câmeras se desenvolverem para o wide, ou seja, para que o quadro seja preenchido lateralmente para a criação de uma narrativa”, conta. “Agora os produtos audiovisuais estão sendo feitos na vertical e com um tempo de atenção muito curto para atingir esse público que não consome mais como antigamente”, completa.
Bora maratonar
A bordo do vale-tudo e da ausência de regulamentação para a atuação de serviços de streaming, alguns dos sintomas do estado de coisas no cinema são o esvaziamento das salas de exibição, a concorrência de plataformas como Netflix, Prime Video e Apple TV+ e a pressão por resultados imediatos de bilheteria. A Downtown luta com dificuldade, por exemplo, para manter um intervalo mínimo de 45 dias entre a estreia dos filmes no cinema e sua ida às plataformas. Barbie, por exemplo, chegou aos cinemas brasileiros em 20 de julho do ano passado e em 12 de setembro já estava disponível para aluguel nas plataformas de streaming.
As chances para produções que não são blockbusters se tornam cada vez mais escassas. “Antes os filmes tinham uma semana para emplacar nas bilheterias. Hoje, eles precisam ‘vencer’ nas duas primeiras sessões da quinta-feira (dia da semana em que estreiam os filmes). Senão o exibidor muda a programação na quinta-feira mesmo. Se estava numa sala de 300 lugares, na sexta já vai para uma de 100. Se não funcionar, no domingo já troca por outro (longa) que esteja rendendo mais”, diz Wainer. “É selvageria. E não tem mais o Paulo Gustavo, que explodia nas duas primeiras sessões”, resume, citando o comediante morto em 2021 pelo coronavírus.
Não apenas no cinema, tudo mudou na passagem dos formatos antigos para o streaming. A cada dia, faz menos sentido a espera pelo próximo capítulo, que sempre caracterizou a dinâmica de acompanhar séries ou novelas de TV. Um estudo conduzido pelo instituto FSB Pesquisa, publicado em 2022, mostrou que 78% dos espectadores de streaming prefere que todos os episódios de uma série sejam disponibilizados pelas plataformas de uma vez, e não aos poucos. Quanto à maneira de assistir, houve empate: 51% prefere assistir aos poucos, contra 49% que elege maratona e assiste tudo de uma vez. E 88% dos entrevistados afirmou já ter virado a madrugada maratonando uma série no streaming.
Já os livros…
Entre os artefatos culturais que acompanham a humanidade há muito tempo, um ocupa lugar especial e demonstra capacidade de resistência diferente dos demais: o livro não parece sofrer o mesmo impacto que, por exemplo, o filme e um disco. “Houve um aumento no consumo de livros durante a pandemia, porque ela devolveu uma parte do tempo das pessoas”, observa o editor Haroldo Ceravolo Sereza, que já presidiu a Liga Brasileira de Editoras (Libre) e é um dos donos da Alameda Editorial. “Uma das coisas mais estáveis do mundo é o livro. O consumo é parecido desde a invenção de Gutemberg até hoje.”
Um levantamento encomendado pela Câmara Brasileira do Livro e publicado em dezembro mostrou que no último ano 54% dos consumidores compraram apenas livros físicos, contra 15% que só compraram livros digitais. Nesse caso, o formato antigo persiste. Mas o modo de aquisição virou de ponta-cabeça e, com o colapso de grandes redes nacionais, como Livraria Cultura e Saraiva, a compra online de livros físicos tomou a liderança das velhas livrarias: 55% dos consumidores adquirem livros pela internet, contra 40% que preferem ir à livraria. Um dado não quantificado pela pesquisa da CBL é a extensão atual do consumo virtual, mas offline, no formato PDF. “Hoje todo mundo tem uma biblioteca na estante e outra na internet”, admite Sereza. Em um mundo acelerado, a leitura e a lenta mudança de páginas parecem ser um bom atenuante.