“Sem tempo, irmão.” Essa expressão, que surgiu em 2018 e viralizou na internet, nunca fez tanto sentido. Vivemos com pressa e consumimos ainda mais rápido. Tudo virou fast: a comida, a moda, as notícias e até o amor. Ao mesmo tempo, vivemos um burnout coletivo no meio de um colapso climático, em que o índice de depressão e doenças mentais nunca foi tão alto.
“Se hoje pensarmos que as pessoas passam mais tempo conectadas do que fora da internet, uma tendência que se intensificou após a pandemia da covid-19, precisamos questionar a qualidade da conexão dos laços sociais”, comenta a psicanalista, psicóloga e artista Rebecca Freire. “Estamos numa era em que manter uma amizade significa compartilhar memes, podcasts, marcar em stories etc., em vez de sair para dançar, comer e ocupar a cidade de modo geral”, continua ela.
São tantas plataformas online disponíveis para facilitar a vida e otimizar o tempo, inclusive encontrar um par romântico, que já não conseguimos mais imaginar um mundo sem elas. O Tinder, por exemplo, é um dos maiores aplicativos de encontros já criados, somando mais de 530 milhões de downloads desde o seu lançamento, em 2012, e 75 bilhões de matches, segundo dados da empresa.
De acordo com o relatório Year in swipe™, de 2023, a perspectiva para o namoro em 2024 será de “viver pelo enredo”. Isso significa que pessoas solteiras estão menos preocupadas com o resultado de seus relacionamentos e mais focadas em criar experiências memoráveis, aproveitando oportunidades – um conceito conhecido como “C.S.E.” (Conexões Sem Expectativas).
O conceito esbarra no termo “amor líquido”, criado pelo sociólogo polaco Zygmunt Bauman, em 2003, e desenvolvido em sua obra homônima para descrever os tipos de relações interpessoais que se desenvolvem na pós-modernidade. Segundo ele, na sociedade líquida, as relações amorosas deixam de ter aspecto de união e passam a ser um mero acúmulo de experiências.
“Bauman ainda traz a noção de que os smartphones se tornaram uma extensão dos nossos corpos e um dos efeitos disso é termos relações mais frágeis e efêmeras”, complementa Rebecca, ressaltando que a existência dos aplicativos de encontro pode ser entendida como o sintoma e a demanda do modo capitalista de produção.
“Se estamos cada vez mais colados no celular, se os trabalhos mudam em razão da transformação tecnológica e digital – resultando, por exemplo, no aumento do trabalho remoto –, os aplicativos de encontro surgem para atender uma demanda de socialização, para construir relações de amizade, sexuais ou amorosas”, explica a psicanalista.
Escolha pelo número
A lógica é similar à do fast food, o precursor do movimento. Diante de um cardápio humano, escolhemos algo que satisfaça o desejo naquele momento e o descartamos na mesma velocidade que o consumimos. Não é uma má ideia se pensarmos que o fast food costumava ser uma exceção ocasional no dia a dia.
O problema é que o fast virou rotina. Se antes a junk food causava problemas, como obesidade e colesterol alto, agora o uso desenfreado de apps e redes sociais afeta a nossa saúde mental. “O excesso de uso dos smartphones e o aumento de informação podem gerar sintomas como tristeza, tédio, confusão mental, irritabilidade, falta de concentração, alteração do sono e do apetite, ataques de pânico, dificuldade de atenção, de aprendizagem e de memória”, detalha Rebecca.
De acordo com a psicanalista, essa sobrecarga sensorial também atrapalha o desenvolvimento pessoal, “pois dificulta o tempo de criação de si mesmo, de elaboração da personalidade e de reflexão sobre questões fundamentais da vida para a tomada de decisões”.
Sem conseguir nos posicionar em nossas relações amorosas, de trabalho e família, sofremos. Para ter uma ideia, 300 milhões de pessoas no mundo têm depressão, segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). No Brasil, o último mapeamento sobre a doença realizado pela OMS aponta que 5,8% da população sofre de depressão, o equivalente a 11,7 milhões de brasileiros.
Modas operandi
Imersos na rotina veloz e furiosa, não paramos para pensar que nossas roupas também estão inseridas na lógica do consumo rápido e descartável, com estragos igualmente complexos. É a bolsa que postam no Instagram, a estética da semana, a sacola de roupas que alguma influenciadora desempacota no TikTok, a peça baratinha na vitrine.
Tudo gera desejo, a oferta é imensa e a máquina não pode parar.
Da mesma maneira que o fast food surgiu como uma opção de comida rápida e acessível para momentos de falta de tempo ou dinheiro, as marcas de fast fashion vendem roupas numa escala massificada e acelerada,
em que os produtos não são feitos para durarem, pois tudo é renovado a cada semana.
O conceito surgiu no final dos anos 1990, de uma expressão usada para identificar o ritmo cada vez mais veloz que algumas empresas de moda acabaram definindo, como a Zara e a H&M. Num mundo globalizado e cheio de informação, as tendências também se tornam cada vez mais efêmeras, pressionando marcas e designers a lançarem novidades quase diariamente.
Pouco se falava sobre o impacto negativo dessa cadeia, até a tragédia do Rana Plaza, em 2013. O desabamento desse prédio de três andares, onde funcionava uma fábrica de tecidos, em Bangladesh, revelou não só o amplo descumprimento de normas básicas de segurança no país, como também expôs o lado obscuro da moda para o mundo.
Na época, cerca de 3 mil pessoas trabalhavam quando o edifício desabou, matando 1.138 e deixando mais de 2,5 mil gravemente feridas. Pouco mais de dez anos após a tragédia, muita coisa mudou, mas paradoxalmente, quase nada mudou, a exemplo do sucesso da Shein, uma das novas marcas de fast fashion mais agressivas da atualidade.
Segundo André Carvalhal, ainda estamos distantes de uma realidade mais sustentável na moda, mas é preciso ter consciência de fatores que vão além da nossa vontade. “Isso passa por políticas públicas, investimento, regulamentação e um monte de coisas que vão além da mudança de consciência individual de quem está comprando”, comenta o autor, consultor e especialista em design para sustentabilidade.
Não podemos ter a ilusão de que tudo irá mudar ou de que todas as marcas e pessoas serão iguais. “O fast food não vai deixar de existir, assim como a comida saudável”, diz Carvalhal. “Nós somos diversos, com diferentes realidades e níveis de consciência, então sempre teremos de tudo. Mas isso não pode ser uma justificativa para não tentar melhorar a consciência das pessoas e as formas de produzir e organizar essa grande indústria.”
Para ele, não basta somente mudar a lógica de produção e a matéria- prima, mas sim o sistema de comunicação.
“Precisamos repensar a lógica de disseminação de tendências com a intenção de que todas as pessoas troquem de roupa a todo momento e se vistam todas iguais, de acordo com o que alguém está ditando ou que está no hype”.
Enquanto a produção cultural alimentar essa lógica, empresas como a Shein, que dão acesso a isso de forma barata, fácil e descomplicada, continuarão existindo. “O problema não está só centralizado na marca e em seus compradores”, destaca Carvalhal. “Eles fazem parte da engrenagem que alimenta e estimula o desejo de trocar de roupa toda hora, seguindo algo que está sendo ditado por alguém e que deve se tornar o uniforme por determinada época. Antes era por uma estação e agora dura uma festa, um final de semana.”
Também é importante olhar para outras questões sociais que atravessam a indústria, como a diversidade e a distribuição de renda. “As marcas precisam melhorar nesse sentido, se abrindo para os diferentes tamanhos de corpos e estilos”, afirma Carvalhal. “E é necessário lutar por justiça social e equiparação de renda para que mais pessoas tenham poder de compra e possam escolher o que querem, em vez de recorrer a marcas posicionadas como alternativas ou soluções para esses problemas financeiros e de corpos.”
O caminho é longo quando se trata de um sistema extremamente estruturado e que funciona há muito tempo, com diversos padrões e lógicas. “Não vamos mudar a mentalidade e os hábitos de comportamento das pessoas de uma hora para outra”, pontua Carvalhal.
Nem tudo está perdido e mudanças estão de fato acontecendo. “Sinto que as pessoas estão cada vez mais conscientes e muitas empresas querem melhorar.” Para o especialista, esse é um momento decisivo da humanidade e vai além da moda. “Tem a ver com estarmos sentindo na pele, literalmente, o que há anos avisaram que seria uma consequência dos impactos da ação humana na Terra e do nosso estilo de vida, que é insustentável.”
O aumento da temperatura do planeta é também uma consequência da cadeia fast fashion, uma vez que grande parte das roupas feitas no mundo é de poliéster, que tem como origem a indústria do petróleo, uma das que mais colaboram com o aquecimento global.
“As pessoas estão percebendo que isso se reflete nas ondas de calor e no aumento das contas de luz e água, entre outros impactos”, diz Carvalhal. “Agora temos a possibilidade de fazer com que mais pessoas e organizações despertem, e a gente talvez consiga virar esse jogo não só para ter um futuro na moda, mas como humanidade.”
Enquanto isso, a tecnologia continuará evoluindo rumo à hiperconectividade. “Já é possível acompanhar na clínica os sintomas desse quadro: cansaço, problemas posturais, dores de cabeça, desconforto nos olhos, aumento da ansiedade, medo de ficar desconectado ou esquecido, sentimento de vazio, solidão e desamparo”, conta Rebecca Freire.
Mesmo assim, há esperança para o futuro. “Apesar do cenário pessimista, acredito na cura pela palavra e na sustentação de espaços de reinvenção de nós mesmos por meio da linguagem: nos divãs, na arte ou na cultura”, defende ela.
A solução é continuar investindo na construção de laços sociais, mesmo que a conjuntura histórica, econômica, tecnológica e política seja outra. “Como trouxe Freud em 1914, no texto ‘Introdução ao narcisismo’: em última análise, precisamos amar para não adoecer”, arremata Rebecca.