Há algum tempo venho suspeitando que, apesar de várias tentativas, nenhuma produção com intenções artísticas é mais capaz de gerar um espasmo que ultrapasse dois segundos em nós, usuários das redes sociais. Na verdade, não só as com intenções artísticas, mas acho que até os públis trabalhados, as polêmicas, as desgraças e as conquistas já viveram dias mais comoventes. Tem muita coisa para falar sobre isso, mas vou me ater ao primeiro a fim de tentar elaborar um argumento. E vou fazer isso a partir das reações a uma das obras recentes que mais me trouxeram essa sensação em 2023: o último projeto da Manu Gavassi.
Acho que não preciso introduzi-lo por aqui, já que, desde que foi lançado, no fim do ano passado, ele recebeu uma cobertura considerável. Mas, caso alguém não se recorde, a cantora-compositora-roteirista-diretora iniciou a empreitada publicando um vídeo no qual criticava a indústria pop musical. Lembro de ter ficado por uns bons minutos vidrada na seção de comentários do post no Instagram e, logo em seguida, percebido que muita gente ao meu redor havia começado a compartilhar o vídeo nos stories. A produção era bem feita, e a crítica, válida, mas fiquei com uma sensação estranha de apatia.
Se observada rapidamente, a repercussão sugere o oposto. Manu conseguiu nos fazer parar para apreciar vídeos longos, e muitos dos que assistiram reagiram de forma bastante calorosa. Nos comentários, e até em uma coluna da Folha de S.Paulo, encontramos pessoas dizendo que amam a sua autenticidade, amam como ela se envolve em cada etapa de seus projetos, amam que ela faz projetos com início, meio e fim. Uma influenciadora se mostrou aliviada por lembrar que ainda “existem pessoas que vivem o que acreditam e têm coragem de ser o que é”.
Ou seja, é seguro dizer que o vídeo não gerou uma só centelha de incompreensão. Ao contrário, Manu teve sua produção usada como uma espécie de sinalização de virtude por quem desejava impactar (não é curioso que uma das primeiras pessoas a compartilhá-lo como genial tenha sido Anitta?). É como se todas as pessoas que o repostaram tivessem feito uma vaquinha e encomendado a ela uma peça para que pudessem mostrar umas às outras em seus perfis o quanto elas também têm consciência do que está acontecendo. Uma vez postada em seus stories, elas puderam seguir o dia com a programação normal.
E, veja, quando falo incompreensão me refiro àquele sentimento de se deparar com algo singular, uma fagulha que nos deixe com a pulga atrás da orelha, desafie nem que seja um pouco nossas experiências e nos faça admitir uma ignorância que provoque curiosidade e interesse. Não gerar essa incompreensão é o que Nelson Rodrigues descreveu uma vez como sendo a morte do artista.
“No geral, sinto que se as redes sociais em algum momento foram capazes de proporcionar algo parecido a isso, elas não apenas deixaram de conseguir, mas acabaram se transformando num deserto, um grande marasmo com algumas tentativas de comoção performáticas — por vezes feitas por pessoas que trabalham em setores criativos tentando se adaptar ou dominar o meio —, que desde sua concepção infelizmente já nascem condenadas a servir a esse marasmo. Mesmo as produções desenvolvidas para o offline, quando se tornam pixels e caem nas redes, acabam se dissolvendo por precisarem se enquadrar em uma arquitetura homogeneizada.
Parece que o meio nunca antes foi tanto a mensagem.
O que mais lamento é que, à medida que as redes sociais foram se espalhando, elas foram minguando o que existia na internet antes delas — e o que ainda poderia se desenvolver. Além disso, a velocidade foi tão grande que nem conseguimos assimilar o que gostaríamos de fazer com as novas possibilidades de conexão. Nesse meio-tempo, as marcas chegaram, atraídas pelo brilho irresistível de uma massa de juventude concentrada, e aí tudo foi ficando cada vez mais acelerado e plástico. As plataformas colocaram os interesses dos anunciantes antes do dos usuários e tudo o que não dava o resultado esperado — a.k.a o que poderia gerar algum tipo de conexão maior — foi descontinuado.
Então, pudera. Acho que até insistimos bastante em manter as redes sociais vivas, fornecendo nosso tempo e gerando faíscas que poderiam ter levado a algo — sempre, porém, com a impressão de que estávamos na casa de alguém que não queria que estivéssemos lá, que vai apagando as luzes e desligando a música (e depois ainda reclama que a festa acabou).
Em diversos momentos, conseguimos encontrar outros espaços para começar novas festas, mas acredito que isso tenha chegado ao fim e agora estamos à deriva, reagindo com o mínimo, deixando os memes falarem por nós, usando cada vez mais emojis e demonstrando interesse com cada vez menos caracteres (abra qualquer publicação e encontre uma abundância de palavras de poucas letras: BAFO, TUDO, DIVA, AMO), que, apesar de parecerem elogios, mais revelam o cansaço de quem está por trás deles. Afinal, não é nada estimulante pensar em construir algo em cima de areia movediça, em um lugar que já entendemos que está à mercê de quem se beneficia a curto prazo do crescimento desenfreado.
Não à toa, o jornalista Ezra Klein reportou em abril passado que os próprios desenvolvedores de AIs estão ansiando por algum tipo de freio. “O que eles me dizem é óbvio para qualquer um que esteja assistindo. A competição os está forçando a ir rápido demais e tomar muitos atalhos. (…) Pela primeira vez, grande parte dessa indústria está desesperada por alguém que ajude a desacelerá-la.” A preocupação, eu suponho, é que ao pular processos em prol da rapidez, seus trabalhos acabem se tornando, no melhor dos cenários, irrelevante e, no pior, destrutivo.
É comum ouvirmos que a nossa geração passou por mais mudanças do que todas as outras. Depois da criação do rádio, foram cerca de 25 anos até o primeiro protótipo da televisão (e ele continuou entre nós!). Mas, desde que entramos na era dos PCs, estamos sempre vendo coisas nascerem e morrerem (pense nos pen drives, que foram incríveis quando lançados e hoje são relíquias). No meio dos anos 1960, Gordon Moore, cofundador da Intel, desenvolveu um conceito que explica essa questão. Conhecido como Lei de Moore, ele basicamente diz que, ao longo do tempo, os chips de computador ficam cada vez menores e mais poderosos, aproximadamente dobrando sua capacidade a cada dois anos, o que contribui para o avanço exponencial da tecnologia. Esse processo foi o que possibilitou, por exemplo, videogames portáteis poderosos, a computação em nuvem (que fez os pendrives ficarem obsoletos) e a democratização do acesso aos eletrônicos.
Acho que tentar acompanhar o ritmo da tecnologia, na maior parte das vezes condensado em redes sociais, que não param de nos inundar com conteúdo, banners irritantes, links infindáveis e pessoas frustradas tentando driblar algoritmos, acabou destruindo a nossa capacidade de focar, a ponto de estarmos agora em um estado de entorpecimento.
“Acho que tentar acompanhar o ritmo da tecnologia, na maior parte das vezes condensado em redes sociais acabou destruindo a nossa capacidade de focar, a ponto de estarmos agora em um estado de entorpecimento.”
É uma vivência que Jia Tolentino descreve bem no ensaio o O eu da internet, presente em seu livro Falso espelho. “Como muitos de nós, tornei-me bastante consciente de como meu cérebro se degrada quando eu o imobilizo a fim de que ele receba todo o fluxo que desce pela corredeira da internet, esses canais ilimitados, todos constantemente carregando novas informações: nascimentos, mortes, ostentação, bombardeios, piadas, anúncios de emprego, publicidade, avisos, reclamações, confissões e desastres políticos, que atacam nossos neurônios desgastados com enormes ondas de informação, que nos levam a nocaute e são instantaneamente substituídas. É uma maneira horrível de viver e que está nos desgastando rapidamente.”
No livro Geração superficial: o que a internet está fazendo com o nossos cérebros, de 2010, Nicholas Carr previu muito do que estamos vivendo atualmente em uma época em que a internet não ocupava nem de longe o espaço que ocupa hoje (ele chegou a ser bem criticado no lançamento por se considerarem as previsões exageradas demais).
O autor argumenta que, com a internet, nós realmente fomos perdendo a capacidade de foco em todas as áreas, inclusive na de nos conectarmos verdadeiramente com o que de fato queremos. Essa dificuldade se dá porque os humanos são naturalmente agregadores de informação e, ao termos consciência de que toda a internet está disponível, fica duro não se deixar seduzir pela possibilidade — hoje o TikTok elevou isso à máxima potência e realmente é difícil prestar atenção em algo quando sabemos que há o infinito logo a seguir, ao alcance de um movimento de dedo.
Junta-se a isso o fato de a maior parte das produções ter passado a ser elaborada já com a premissa de que a gente não precisa absorvê-las, mas apenas reagir a elas, e temos um enfraquecimento da nossa capacidade de envolvimento. Carr tem uma frase interessante, que diz: “Deixar o Google lembrar de tudo não faz com que nosso cérebro tenha mais espaço para pensar em coisas importantes, mas acabe atrofiando a memória”.
“Deixar o Google lembrar de tudo não faz com que nosso cérebro tenha mais espaço para pensar em coisas importantes, mas acabe atrofiando a memória.”
Não é que o cérebro não tenha uma capacidade exponencial de acompanhar novas informações, mas pesquisas apontam que lidar com a troca rápida de assuntos pode privá-lo do tempo de descanso necessário para construir memórias, já que elas só se consolidam durante esse período. A questão é que apenas criando essas memórias poderemos depois acessá-las para quem sabe construir algo, ou mesmo apreciar algo. Sem elas, presos no formato, e viciados em abrir, compartilhar, fechar e repetir, provavelmente nem perceberemos quando algo novo estiver surgindo.
No momento, porém, me encontro curiosamente esperançosa. Reconheço que o fim nem sempre é explosivo. Às vezes, é um processo gradual, um olhar para o lado e se dar conta de que a festa acabou, que seu corpo só está se mexendo por inércia. Já tentei todo tipo de estratégia para ficar longe das redes, mas recentemente devo admitir que não tenho precisado tanto de nenhum desses recursos. Afinal, não enxergo mais aquele tempo — que pode ter sido só ingenuidade — em que o que era debatido online parecia conter um grande potencial de transformação (ou mesmo de inspiração, encantamento, diversão).