Alice, a ovelha desgarrada da família Caymmi

Cantora e compositora comemora os 10 anos do álbum Rainha dos raios com shows no Teatro Oficina, em São Paulo.

Depois de um álbum de estreia como cantora e compositora em 2012, Alice Caymmi se fez notar mais como intérprete com Rainha dos raios (2014), surpreendendo quem conhece a tradição musical da família Caymmi. Ela deixou de lado as tradições da MPB e embalou num pacote só canções de MC Marcinho (o funk carioca “Princesa”), Caetano Veloso (“Homem”), Maysa (“Meu mundo caiu”), Michael Sullivan (“Meu recado”, parceria inédita com Alice), Gilberto Gil e Caetano (“Iansã”) e Paulo Coelho (o hit “brega” “Sou Rebelde”). No show original, havia ainda disco music de Donna Summer (“I feel love”), pop radiofônico do Abba (“Let all your love on me”) e rock dos Rolling Stones (“Paint it black”).

Aos 34 anos, a carioca retoma o repertório eclético do disco em três apresentações, a partir desta quarta-feira (14.08), em território especial: Alice vai ocupar o palco-passarela do Teatro Oficina, em São Paulo, num espetáculo comemorativo dos 10 anos do álbum que dedicou à orixá Iansã.

Em permanente confronto musical com a família, por não se limitar ao repertório tradicional da música popular brasileira, a neta desgarrada de Dorival Caymmi (1914-2008) tem formação de atriz e conta, às gargalhadas, que aos 18 anos quis integrar o teatro dirigido por José Celso Martinez Corrêa (1937-2023), mas foi impedida pelos pais, o compositor e cantor Danilo Caymmi e a cantora Simone Malagutti, que foi vocalista da banda de Tom Jobim nos anos 1980 e 90. Temiam que ela se acidentasse nas estruturas de ferro do teatro, como havia acontecido com um primo ator.

alice caymmi

Foto: Gustavo Zilbersztajn

A coragem para ocupar um palco complexo vem desde quando ela crescia em meio a duas famílias muito próximas, os Caymmi e os Jobim, matrizes respectivas do samba baiano e da bossa nova carioca. Ela descreve o que é ter o compositor de “O que é que a baiana tem?” como avô e os também cantores Nana e Dori como tios: “É uma experiência emocionante, sociológica, política, artística. É uma performance de Marina Abramović. É tudo. Ser Caymmi é estar preparado para todo tipo de coisa. Tudo pode acontecer”.

O show comemorativo, Rainha dos raios: a fúria, resgata a direção criativa de Paulo Borges, idealizador do São Paulo Fashion Week, que já havia assinado a colorida apresentação original, mas também a intimista Electra, de 2019, em que a cantora interpretava Maysa, Tom Zé e Tim Maia. Borges traz com ele o figurino de João Pimenta e a edição de moda de Paulo Martinez. “Alice vai ocupar todo o teatro, com a voz e com a imagem”, promete. “Isso é novo, porque o show original era em palco italiano (retangular), e ela tinha pessoas que vestiam e tiravam sua roupa em cena, quase como uma boneca. Agora ela não vai ter praticamente ninguém para ajudá-la em cena com os figurinos nem com nada.”

Na entrevista a seguir, feita no Teatro Oficina durante um ensaio, a cantora fala sobre padrões estéticos, escrever letras para Pabllo Vittar e para si própria, a parceria com Michael Sullivan e os desafios de se impor como compositora num ambiente ainda muito masculino.

“Posso não ter bom senso para algumas coisas, fazer um monte de coisas erradas. Mas tenho coragem. Isso eu tenho.”

Iansã

Rainha dos raios foi o primeiro momento em que me vi livre. O primeiro álbum era de composições minhas, ainda muito enraizadas na minha família. E esse segundo fiz em um momento em que estava prestes a passar por uma cirurgia, porque tinha descoberto uma endometriose avassaladora. Tinha o risco de ficar estéril. Falei: ‘Ah, já que pode ser que eu perca isso (a fertilidade), vou deixar uma coisa aqui, um filho. E gravei ‘Iansã’ (de Gilberto Gil e Caetano Veloso, lançada por Maria Bethânia em 1972). Sem perceber, fiz uma oferenda para a orixá, um pedido de não perder minha fertilidade. Quando voltei, estava com útero e ovários intactos. Bom, eu precisava fazer um disco para ela, né? Daí surgiu o personagem novo, descolori o cabelo.” 

Teatro Oficina

“A primeira peça do Oficina que assisti na minha vida, As bacantes, vi umas dez vezes. Com esse começo de estudo de teatro, passei a ser mais livre e uma artista mais interessante. Para Rainha dos raios, trouxe minhas referências pop todas, os filmes de Quentin Tarantino, as trilhas de western spaghetti, do Ennio Morricone. Agora vai ser uma coisa Oficina encontra Tarantino e orixá. É assustador estar ali, mas me propus e vou ter que dar conta disso. Para ocupar esse espaço cenicamente, cara, tem que se preparar muito. Falei: ‘Bom, agora sou desse tamanho’. Desde então, estou lidando com o tamanho cênico que tenho agora.”

A atriz

“A atriz nunca morreu em mim. O palco é o lugar onde me sinto melhor. Por incrível que pareça, me sinto muito mais à vontade no palco do que numa festa, por exemplo. Tenho mais vergonha de estar em situações sociais do que em evidência. Porque tenho muito domínio do palco, e consegui isso com muito estudo, não por causa da minha família.”

Os Caymmi e os Jobim

“Caymmi e Jobim é quase um yin-yang. As famílias são muito amigas nas suas três gerações, porque era Tom e meu avô, meu pai e Paulo Jobim (filho de Tom), e eu fiquei muito amiga da Maria Luiza Jobim (caçula de Tom), que é afilhada do meu pai. Tom era um segundo pai do meu pai. Os Jobim e os Caymmi têm uma ligação, mas a gente é absolutamente oposto. O que os Jobim tem de cerimônia, timidez e deprê, os Caymmi têm de histriônico, de ‘dane-se’. Eles são mais fechados, e a gente chega para animar.”

alice foto1

Foto: Gustavo Zilbersztajn

Pabllo Vittar

“Quando componho para os outros eu arraso. Se tem uma pessoa que me inspira neste mundo, ela se chama Pabllo Vittar (Alice escreveu o hit “Problema seu”, em 2018, e “A lua”, em 2021, para a cantora). Falei: ‘Amiga, não sou eu. O negócio vem para você’. Sai alguma coisa de mim e faço coisas que são a cara dela. Chego a esses lugares inspirada por outras pessoas, mas para mim mesma não consigo. Parece que tenho uma cegueira como compositora para o meu próprio trabalho como intérprete. Nem sempre eles se encontram, e tudo bem.”  

Compositora em um mundo masculino

“Vou aos campings de composição (eventos em que artistas de perfis diversos se reúnem por vários dias para compor em conjunto para outros nomes) e é muito homem. Aí fico de saco cheio e vou embora (gargalha). Não vou dar nomes, mas são artistas grandes que chamam para os campings. Por isso, fico bem com a Pabllo. Vou ao camping de composição dela e só tem amigo LGBTQIA+. Aí, consigo, já que são lugares que não são tóxicos. Se estou sozinha em casa, tentando compor para mim, ou estou com um monte de macho chato em volta, macho da música que não entende música, não entende nada, entro em pânico.”

“Não tenho essa coisa de arte superior, gênero inferior, ‘ai, não ouço sertanejo’”

Uma família do barulho

“Vieram ler para mim uma entrevista da minha tia Nana, em que ela fala que eu não dei certo (gargalhadas), que ‘não deu mel’. Foi aquela entrevista (para a Folha de S.Paulo, em 2019) em que ela esculhambou Caetano e falou bem daquele ‘querido’ (Jair Bolsonaro). Mas Nana é assim. Ela é do contra. A gente se ama, se adora. Do nada, ela me liga e fala: ‘Sou sua tia, te amo, estou aqui’. Minha família me preparou para a vida. Ninguém dourou a pílula nem ficou passando a mão na minha cabeça. Eles não gostam das minhas coisas. Um deles já falou: ‘É, realmente, você canta muito, isso não dá para negar’ (risos). Quando apareci com Paulo Borges, minha tia disse: ‘Para que isso tudo?’. Falei: ‘Olha, tia, não é só a música. Tem uma coisa chamada teatro, que nasceu há milênios’. Ela queria que eu fizesse o que ela faz, o que ela entende como música. Minha família é muito isso, essa geração. Meu avô era outro papo. Gostava de artes plásticas, cinema, teatro, de moda, desenhava as próprias roupas.” 

A herança

“Uma hora falei pra eles: ‘Galera, vocês não vão gostar do que vou fazer agora, então vou dar uma afastada, tá?”. Precisava fazer o que eu quero. Me desprendi da herança. A que eles carregam é deles. Se eu quiser pegar, eu pego. Minha herança é absolutamente subjetiva e imaterial. Não é dinheiro. Fazer esse movimento requer coragem. Posso não ter bom senso para algumas coisas, fazer um monte de coisa errada. Mas tenho coragem. Isso eu tenho. E tenho que agradecer à minha mãe, de uma família italiana antifascista tradicional comunista. Foi ela que sempre falou: ‘Você é você. Faz o seu negócio. Dane-se. Vai!’.” 

CAPA DELUXE

A versão deluxe de Rainha dos Raios, com três remixes e uma faixa inédita, O amor (El amor) Foto: Divulgação

Popular

“Meu avô adorava o Sullivan (coautor de hits de Roberto Carlos, como ‘Amor perfeito’, Gal Costa e Tim Maia, ‘Um dia de domingo’, e Xuxa, ‘Brincar de índio’). Mas a segunda geração ficou essa coisa um pouco conservadora. Dou um pulo para trás, o que meu avô fazia. Gosto do Sullivan pelo popular. Meu avô gostava muito do que é popular, do que as pessoas gostam, e eu também. Não tenho essa coisa de arte superior, gênero inferior, ‘ai, não ouço sertanejo’. Tem grandes canções em todos os gêneros. Visito todos, faço questão de trazer para a luz. Perguntam: ‘Que música é essa, ‘Princesa’?’. Eu: ‘É MC Marcinho’. ‘Quem é MC Marcinho?’ Bota no Google. Invalidar a arte do outro? Para quê? O que ganho com isso? Nada. Só perco. Perco alcance, expressividade, material, tudo. Vou num show desse feliz.” 

McQueen

“Já era apaixonada por moda. Colocava Alexander McQueen na minha lista de referências. Para mim, isso é um artista. Moda é arte, muito. McQueen é um estilista que mudou profundamente a minha visão sobre arte, figurino e conceito do meu trabalho. Quando encontrei Paulo Borges, isso se acentuou ainda mais, porque já tinha a moda como um princípio da minha expressão.” 

Padrões estéticos

“Aconteceu de eu estar magra, na minha adolescência, descer do palco e virem me perguntar como é ser fora do padrão. Na verdade, isso é uma tentativa de apagar o outro. É muito mais confortável o mundo sem uma pessoa dessa (com corpo fora de um padrão). A moda foi muito um veículo do padrão, mas agora está sendo o contrário. A gente está tendo que viver de outra forma, e vai ser assim.”

Alice Caymmi: 14, 21 e 28 de agosto, às 20h30, no Teatro Oficina (Rua Jaceguai, 520, Bixiga, SP). Ingressos: R$ 120 (inteira), R$ 60 (meia-entrada) e R$ 50 (moradores do Bixiga com o comprovante de endereço)