Nestes anos 2000, as mulheres têm ocupado um lugar importante na música brasileira não apenas como cantoras, mas também como compositoras de seus próprios repertórios. Das estrelas pop Luísa Sonza, Anitta, Ludmilla e IZA às cultuadas Marisa Monte e Adriana Calcanhotto, as artistas femininas do presente compõem com naturalidade e desenvoltura.
Essa é, no entanto, uma realidade recente. Desde a pioneiríssima Chiquinha Gonzaga, no século 19, até o surgimento de Dolores Duran e Maysa, na segunda metade dos anos 1950, houve um hiato em que a composição esteve em grande medida interditada ao ponto de vista feminino – dona Ivone Lara chegou a creditar as letras que escrevia aos primos para conseguir vê-las sair do papel.
Foi só no fim dos anos 1960 que chegou a mais completa autora brasileira de rock, Rita Lee. Na sequência, Marina Lima liderou um levante feminino na virada dos anos 1970 para os 80, quando também despontaram cantautoras, como Angela Ro Ro. O rock dos anos 1980 legitimou poucas compositoras, como Paula Toller, e preparou o caminho para a explosão, nos anos 1990, de cantoras-compositoras como Adriana Calcanhotto e Marisa Monte.
Já no início dos anos 2000, o rock enérgico de Pitty deu sequência à linhagem de Rita, inclusive no esforço de imposição feminina. Mas, como lembra Fernanda Takai, do Pato Fu, a conta ainda é muito desigual: “Mulheres gravam homens e mulheres, mas os homens basicamente não gravam mulheres”.
De fato, no estudo mais recente do Escritório de Arrecadação de Direitos (Ecad), referente a 2023, as mulheres ainda são 10% de todos os arrecadadores de direitos autorais no Brasil. Em termos numéricos, ficam com apenas 8% dos reais arrecadados pela execução pública de suas criações.
A seguir, acompanhe um resumo da suada presença feminina na composição brasileira, de Maysa a Tati Quebra Barraco.
“Mulheres gravam homens e mulheres, mas os homens basicamente não gravam mulheres” Fernanda Takai
O início: Chiquinha Gonzaga, Dolores Duran e Maysa
Filha de um militar do Segundo Império com uma mulher escravizada e depois liberta, a pianista, compositora, regente e ativista dos direitos autorais Chiquinha Gonzaga (1847-1935) é dona de um pioneirismo indiscutível. Compondo para piano e canto, deixou cerca de 300 obras, entre elas “Ó abre alas” (1899), iniciadora da tradição das marchinhas carnavalescas.
Daí em diante, pouquíssimas compositoras tiveram espaço até os anos 1950, quando criou-se o primeiro momento favorável para as mulheres. Foi quando surgiram Dolores Duran (1930-1959), precursora da bossa nova, com lamentos suaves como “A noite do meu bem”, e Maysa (1936-1977), que enfrentou um marido ciumento de sobrenome Matarazzo e guardou toda a dor do mundo em composições como “Meu mundo caiu” (1958).
Dolores morreu precocemente, de infarto, aos 29 anos, quando apenas começava a se firmar como autora, além de cantora de baiões e boleros, assim como Maysa, que nos deixou aos 40 anos, num acidente automobilístico na Ponte Rio-Niterói.
Fotos: Getty e Reprodução
Anos 1960: os festivais dominados por homens, Joyce e Luli & Lucina
A era dos festivais fez o país fervilhar pela televisão, mas não foi gentil com as mulheres. Raramente assimiladas por jurados, plateia e diretores de gravadoras, apresentaram-se à competição Tuca, Tereza Souza, Vera Brasil, Maricenne Costa, Regina Werneck, Sueli Costa, Maria Helena Toledo, Lucina e poucas outras. Nenhuma compositora conseguiu o primeiro lugar nos festivais, que revelaram cantores-compositores como Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil.
Então iniciante, Joyce Moreno relembra à ELLE a experiência de participar do Festival Internacional da Canção de 1967: “A imprensa ficou dividida. Fui chamada por alguns de ‘imoral’, ‘vulgar’ etc., por causa da expressão ‘meu homem’, na música ‘Me disseram’. O público do festival definitivamente não gostou. Fui bastante vaiada na minha apresentação no Maracanãzinho”.
Joyce descreve o panorama que encontrou ao chegar: “Era a solidão total. Era, naquele momento, a única compositora atuante em letra e música da minha geração, e ainda por cima escrevendo no feminino. Sabia de Dolores e Maysa, que admirava como cantoras, mas achava suas composições meio depressivas. Nas reuniões dos amigos, eu era sempre a única menina a mostrar músicas próprias”.
“Fui chamada por alguns de ‘imoral’, ‘vulgar’ etc., por causa da expressão ‘meu homem’, na música ‘Me disseram'” Joyce Moreno
Depois da estreia, Joyce amargou uma década de rejeição ao seu trabalho autoral, que só floresceu amplamente a partir do álbum Feminina (1980). Ela lembra que em 1981, já em tempos de abertura política e cultural, teve a execução pública da canção “Eternamente grávida” censurada porque continha termos como “parir”.
Outra concorrente de festivais, Lucina faria história nos anos 1970 na dupla Luli & Lucina, menos em suas próprias vozes do que pelas gravações de Ney Matogrosso, como “O vira” e “Fala” (de Luli ainda sem Lucina), de 1973, com os Secos & Molhados, ou “Bandolero” (da dupla), em 1978. Vivendo um casamento a três com o fotógrafo Luiz Fernando Borges da Fonseca, Luli & Lucina permaneceram como um segredo bem guardado de composição feminina brasileira, ainda mais raro porque era uma parceria entre duas mulheres.
Autora há 55 anos, Lucina minimiza os percalços para se firmar mulher num universo masculino: “Sou talvez uma das únicas pessoas que conheço que não tiveram problema nenhum pelo fato de ser mulher. Nenhum, zero. Mas, realmente, a grande maioria das mulheres era só de cantoras, ou então quem compunha nem aparecia”. Luhli, que adotou o H nos anos 2000, morreu em 2018.
Lucina e Luli nos anos 70
Anos 1960 e 70: Rita Lee, pós-Mutantes
Quem iria mudar o curso da história, ainda no final da década de 1960, seria Rita Lee (1947-2023), primeiro como integrante da banda de rock tropicalista Mutantes, da qual disse ter sido expulsa porque não queriam que fizesse mais que tocar pandeiro.
Em carreira solo, Rita se tornou compositora de rocks como os feministas “Ovelha negra” (1975), “Miss Brasil 2000” e “Jardins da Babilônia” (1978). Com o marido, Roberto de Carvalho, mergulhou no pop irreverente, bem-humorado e de duplo sentido de “Doce vampiro” (1979), “Cor de rosa choque” (1980) e “Banho de espuma” (1982), com grande sucesso nas paradas, nas rádios e nas novelas de TV.
Rita Lee nos anos 70
Anos 1970: de dona Ivone Lara a Vanusa
Inicialmente apenas compositora, Sueli Costa se aventurou como cantora a partir de 1975, lançando uma série de álbuns. Compondo com diversos poetas do sexo masculino, foi a principal autora da MPB dos 1970, sendo gravada por Maria Bethânia, Elis Regina, Simone, Gal Costa e Fafá de Belém.
Dona Ivone Lara (1922-2018), por sua vez, foi a primeira mulher a assinar um samba-enredo para o Carnaval carioca: “Os cinco bailes da história do Rio”, que deu ao Império Serrano o título de vice-campeão de 1965. Consta que dona Ivone compunha para a escola de samba desde os anos 1940, mas não tinha permissão da diretoria para assinar as músicas por ser mulher. Suas criações eram então creditadas a seus primos Antônio dos Santos (o Mestre Fuleiro) e Hélio dos Santos (Tio Hélio). Mesmo com o sucesso de “Cinco bailes”, a então enfermeira levou mais uma década para conseguir se impor como cantora e compositora de samba e assinar clássicos como “Sonho meu” (1978) e “Alguém me avisou” (1980).
Consta que dona Ivone compunha para a escola de samba desde os anos 1940, mas não tinha permissão da diretoria para assinar as músicas por ser mulher
Mais jovem, a carioca Leci Brandão foi apadrinhada por Cartola em 1974, para se tornar uma das maiores compositoras de samba, com “Zé do Caroço” e “Isso é fundo de quintal” (1986). Leci saiu na frente ao abordar questões de gênero e orientação sexual, em sambas como “Assumindo” e “Deixa, deixa”, lançados em 1986, após amargar um longo período na gaveta das gravadoras.
Uma segunda onda feminista se insinuou no horizonte de onde menos se poderia esperar: ex-cantora de jovem guarda, casada com o ídolo popular Antonio Marcos, Vanusa (1947-2020) lançou três composições próprias de grande sucesso, “Manhãs de setembro” (1973), “Estado de fotografia” (1977) e “Mudanças” (1979).
Dona Ivone Lara na década de 70
Anos 1980: de Paula Toller a Sula Miranda
O boom do pop-rock dos anos 1980 deu guarida a criadoras como Marina, Mercenárias, Vange Leone (à frente da banda masculina Nau), Paula Toller (idem com o Kid Abelha), Virginie (da banda Metrô), Bebel Gilberto, Taciana Barros, Dulce Quental, May East, Laura Finocchiaro, Neusinha Brizola…
Se as Mercenárias faziam punk-rock no feminino, o tom da maioria das autoras da década era de pop leve e romântico, com exceções como Marina e Vange, que preferiam temas mais adultos e faziam referências mais explícitas à sexualidade.
De outro lado, os anos 1980 produziram compositoras de samba (Jovelina Pérola Negra, Nilze Carvalho), pop (Rosana, Verônica Sabino), sertanejo (Roberta Miranda e Sula Miranda) e axé (Sarajane).
Paula Toller
Os anos 1990: Vange Leonel, Marisa Monte e Fernanda Takai
A última década do século 20 começou com o hit pop-rock “Noite preta” (1990), da dupla/casal Vange Leonel e Cilmara Bedaque, trilha da novela Vamp (1991-1992). Adriana Calcanhotto, futura autora de sucessos como “Enguiço” (1990), “Esquadros” (1992) e “Cariocas” (1994), abriu portas para que as chamadas cantoras ecléticas dessa época, que interpretavam gêneros variados, se lançassem também como autoras, casos de Marisa Monte e Zélia Duncan. Cássia Eller, que interpretava com forte carga autoral, se restringiu ao posto de cantora.
Os 1990 viram surgir uma revoada: Fernanda Abreu (pós-Blitz), Daniela Mercury, Mart’nália, Ivete Sangalo, Cris Braun, Ana Carolina, Vanessa da Mata, Karina Buhr e Fernanda Takai.
À frente da banda (de homens) Pato Fu, Takai estima ter composto 60 canções. “Eu me sentia meio sozinha. Não tinha uma turma de mulheres a quem recorrer perto de mim. Hoje mudou demais. Tem tanta compositora boa, com muita coisa a dizer, em formatos diversos. Elas se contactam muito mais”, opina.
Fernanda Takai
Anos 2000: Pitty, Tati Quebra Barraco e Marília Mendonça
Se a tradição dos homens que cantam suas próprias composições é tão antiga quanto a indústria fonográfica, apenas na primeira década do século 21 o formato se tornou definitivo também no feminino. Na primeira década dos anos 2000, vieram Pitty, Teresa Cristina, Juçara Marçal, Roberta Sá, Anelis Assumpção, Iara Rennó, Céu, Lovefoxx, Mariana Aydar, Tiê, Ana Cañas, Maria Gadú e Nubia Maciel (do grupo Samba de Rainha).
Segundo conta Pitty à ELLE, seu início se deu “num ambiente muito masculino, o rock, tendo que lidar com a objetificação, com as mulheres sendo sempre vistas como objeto para o consumo do olhar do homem, principalmente”. “Fiz questão de me estabelecer como compositora desde o começo. Era um lugar que eu queria ocupar”, explica.
“Fiz questão de me estabelecer como compositora desde o começo. Era um lugar que eu queria ocupar” Pitty
O ativismo feminista ficou a cargo de funkeiras cariocas, como Deize Tigrona e Tati Quebra Barraco, que furaram a bolha das favelas cariocas no início dos anos 2000, e de rappers como Negra Li, Tássia Reis e Flora Matos. Tati representa bem o avanço dessa geração, com versos como “tô podendo pagar hotel pros homens, isso é que é o mais importante”.
Já nos 2010, explodiu a partir do interior o fenômeno “feminejo”, com Marília Mendonça, Paula Fernandes, Naiara Azevedo, Simone Mendes, Maiara & Maraísa, Paula Mattos, vindas de rincões do país, e Ana Castela (já nos 2020), em canções de autonomia feminina, deboche, diversão e insubmissão às normas impostas pelo lado masculino.
Atuante principalmente a partir dos anos 2010, a paraense Gaby Amarantos relata a falta de reconhecimento inicial como autora e a importância de uma sertaneja em particular: “A ficha só foi cair depois da Marília Mendonça. Agradeço muito a ela, porque fez com que o mercado entendesse que nós, mulheres, cantamos, escrevemos, produzimos, fazemos tudo”. Fenômeno popular desde que surgiu, em 2017, Marília continua frequentando o topo das paradas das plataformas digitais nos anos seguintes à sua morte, em 2021.
Marília Mendonça
Atualmente: a explosão das identidades
A explosão identitária tem conduzido a leva mais recente, com autoras de música afro-brasileira, indígena, lésbica, trans e assim por diante. No eixo Rio-São Paulo, destacam-se Tulipa Ruiz, Alice Caymmi, Letrux, Ava Rocha, Maíra Freitas, Mahmundi, Mãeana, MC Carol, Liniker, Linn da Quebrada e Jup do Bairro.
Essa cena se espalha pelo Brasil com as mineiras Marina Sena e Bia Ferreira, as paraenses Gaby Amarantos, Aíla, Keila e dona Onete (veterana que só lançou o primeiro álbum aos 73 anos), as baianas Xenia França, Larissa Luz, Luedji Luna e Josyara, as pernambucanas Duda Beat, Doralyce e Flaira Ferro, a paranaense Karol Conka e muitas outras.
“A ficha só foi cair depois da Marília Mendonça. Agradeço muito a ela, porque fez com que o mercado entendesse que nós, mulheres, cantamos, escrevemos, produzimos, fazemos tudo” Gaby Amarantos
Ainda nos anos 2010, a música em escala industrial forjou compositoras de uma nova estirpe, cujos hits são criados em parcerias múltiplas, por vezes com mais de uma dezena de autores assinando cada música. Nesse formato, produzem nomes como Anitta, Ludmilla, Iza, Lexa e Luísa Sonza.
Nos 2020, surgem novas paulistas (Sophia Chablau, as gêmeas Tasha & Tracie, Bivolt, a indígena Katu Mirim), cariocas (Maria Luiza Jobim, N.I.N.A, Slipmami), baianas (Rachel Reis) e maranhenses (Kaê Guajajara)… O levante feminista dos últimos anos se reflete diretamente nas letras das compositoras, como bem demonstram as rappers MC Carol e Karol Conká em “100% feminista” (2017): “Eu que mando nessa porra, eu não vou lavar a louça/ sou mulher independente, não aceito opressão/ abaixa sua voz, abaixa sua mão”.