COP 30: Como a moda pode impulsionar a bioeconomia no Brasil

Da economia circular à geração de renda contínua para artesãos, conheça iniciativas de bioeconomia relacionadas à moda presentes na COP 30.


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Look da marca Sioduhi Studio com a tecnologia ManioColor. Foto: Divulgação



“Essa aqui é a tiririca, que vem do capim-navalha”, explica Terezinha Togojebado, do povo Bororo, apontando para um colar com pequenas contas que variam entre tons de creme e marrom. Cada volta do acessório custa 70 reais, e ela se apressa para justificar o preço: com as queimadas ilegais, essas e outras sementes estão cada vez mais difíceis de conseguir. A artesã estava sentada no chão, ao lado de um pano com peças que trouxe para vender na Zona Verde, a área da COP 30 aberta ao público. 

Natural do Mato Grosso, ela mora em Brasília – onde comercializa suas criações no 178 do Bloco F da Torre de TV – e veio de carro a Belém. O talento manual foi passado de geração em geração, junto aos conhecimentos sobre a coleta dos materiais. “Pegar a fibra da palmeira de buriti durante a lua nova não presta. A palha não vai ficar assim, sem farpa”, exemplifica, mostrando a alça de uma cesta. “As pessoas não entendem que essas coisas levam tempo.”

Como tantas outras, a família de Terezinha produz e vende seu artesanato por conta própria. Não é fácil. Atravessadores aumentam o preço das matérias-primas e a renda é instável. Ainda assim, é uma janela para o potencial da bioeconomia, que pode chegar a um terço da economia global.

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Na COP30, Terezinha Togojebado, 60, mostra as contas de semente tiririca. Foto: Ana Pinho

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O que é bioeconomia

Segundo o conceito adotado pelo governo brasileiro, a bioeconomia é um modelo de desenvolvimento produtivo e econômico, baseado em valores de justiça, ética e inclusão, capaz de gerar produtos, processos e serviços, de forma eficiente, com base no uso sustentável, na regeneração e na conservação da biodiversidade. Tudo norteado por conhecimentos científicos e tradicionais.

A transição para a bioeconomia é essencial para a descarbonização e proteção da natureza, assim como para uma economia mais inclusiva e resiliente. E também pode valer muito: o Fórum Mundial de Bioeconomia estima o valor atual em 4 trilhões de dólares, com projeção para 30 trilhões até 2050. 

Na prática, trata-se de agregar valor ao longo da cadeia produtiva, só que de maneira sustentável. No chão, as sementes de tiririca são só sementes. Ao serem coletadas por Terezinha, furadas com agulha e levemente queimadas para ganhar nuances de cor, sobem de nível. Se o colar tiver um design diferente ou uma história por trás – feita de forma sustentável no Cerrado por uma mulher artesã, por exemplo –, ganha outra cifra. 

O desafio é comunicar e disponibilizar as peças e elaborar uma construção de marca atraente para o consumidor. Em um país com distâncias continentais, demandas e gostos tão variados, fica ainda mais complicado. Algumas iniciativas, porém, visam contornar tais empecilhos. Uma delas é a plataforma Tucum Brasil, que compra artesanato indígena na fonte e vende via e-commerce e no seu próprio espaço, no Rio de Janeiro, adicionando o contexto cultural de cada peça. 

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A Casa Tucum, no Rio de Janeiro. Foto: Divulgação

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“Eu via a necessidade das artesãs em comercializar seus produtos. Ao mesmo tempo, precisava haver um trabalho conjunto que não alterasse seus modos de vida”, fala Amanda Santana, diretora-executiva do projeto. Ao longo do ano, ela promove oficinas de interação com mercado, facilitação de gestão e precificação, entre outros. “Fomos construindo uma relação em que elas são as protagonistas. Para a autoestima dos jovens, ver os pais artesãos terem autonomia financeira através da sua cultura é muito poderoso. São essas culturas que mantêm a floresta de pé.” 

Durante a COP30, a pedido do Instituto Kabu, Amanda facilitou uma oficina com mulheres Kayapó para desenvolver uma coleção de tiragem limitada. O início foi mais conceitual. “O que é moda para o Kayapó? E sim, o Kayapó tem as suas tendências. Tem época que uma cor de miçanga ou um grafismo está mais em alta. Fomos nos alinhando para então ir para a prática e criar uma coleção que elas pudessem replicar”, conta Amanda. Ao final, três desenhos foram escolhidos, junto com as cores das miçangas – tudo com a ajuda de um tradutor, visto que as artesãs não falam português. 

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Artesãs do povo Kayapó criando uma coleção de tiragem limitada em oficina da Tucum Brasil. Foto: Amanda Santana

Hoje, a rede da Tucum Brasil tem mais de 50 grupos de artesãs, principalmente na Amazônia. No negócio desde 2013, Amanda destaca a importância de obter financiamento com cuidado. “Aqui não é venture capital: é adventure capital, o capital de aventura”, brinca. “Os fundos precisam chegar na mão de quem sempre preservou a floresta – até agora sem dinheiro. Imagine o que pode ser feito com mais recursos.”

Mais informação de moda, mais valor agregado

Ser uma ponte entre os mundos do fazer tradicional e o cliente contemporâneo é um dos objetivos de Elijane Nogueira, da Yanciã. Ela define a empreitada como uma startup de moda e impactos positivos socioambientais. 

Parte de seu tempo é investido em dialogar com comunidades tradicionais da Amazônia e mapear biomateriais, biopigmentos e técnicas notáveis pela floresta. Há ainda as pesquisas junto ao Instituto Federal do Amazonas e o trabalho de construção de marca e divulgação – que a levou de Manaus a Belém e Londres, entre outros lugares. O que o cliente final vê são bolsas, roupas e biojoias, sempre feitas de sementes, fibras vegetais, pigmentos naturais ou madeira de reaproveitamento. 

Elijane atua como curadora e colaboradora dos artesãos amazônicos, sugerindo aprimoramentos e alterações de design. “É algo com mais cuidado no acabamento e na pigmentação para colocar nosso artesanato num lugar de alta artesania”, explica. Cada produto tem uma ficha técnica onde constam os nomes de quem trabalhou nele, comprovando a autoria coletiva. 

A empreendedora é manauara, filha e neta de ribeirinhos, com um avô, que foi cultivador braçal de malva e juta, e uma bisavó de filiação Karib, que abarca as etnias Waiwai, Hixkaryana e outras. “Minha ascendência é ribeirinha, cabocla e indígena. Estou nesse processo de retomada (de identidade)”, fala.

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Imagem da exposição El Dorado, com peças de sementes Yanciã. Foto: Rudá Marques

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Na Yanciã, quando uma peça é vendida, Elijane compra mais duas da mesma comunidade – sempre à vista, para gerar renda. Apesar de atuar no mercado de artesanato brasileiro, avaliado em 100 bilhões de reais ao ano, vive na corda bamba. “Essa questão do empréstimo é difícil, porque nossos negócios são de risco”, fala ela. “Mas essa é minha crença. Enquanto as empresas não estiverem olhando para os impactos positivos em diferentes setores, estamos fazendo mais do mesmo.” 

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Elijane (à direita) com D. Marlene, do povo Tikuna, na colheita e beneficiamento da fibra de tucum em Umariaçu, Alto Solimões, Amazonas. Foto: Acervo pessoal

A geração de renda estável para os artesãos também ocupa a cabeça de Amanda Santana. “Para eles, a renda é sempre incerta: tem meses que vão vender bem e outros que vão vender pouco. Eu (como empreendedora) tenho que comprar deles e vender (pela plataforma da Tucum), o que leva uns 60 dias. É um estoque caro e compromete meu fluxo financeiro, diminuindo minha possibilidade de fazer uma compra contínua”, explica. 

Por isso, Amanda está captando investimentos para um fundo que auxiliará no capital de giro de negócios como Tucum Brasil e Yanciã. O objetivo é assegurar as compras de artesanato por pelo menos dois anos, gerando uma renda estável para as comunidades. “O fundo me pagaria à vista e eu devolveria à prazo, com juros abaixo do mercado. E assim a roda vai girando.”

Celeiro de biomateriais

Além do artesanato, a biodiversidade brasileira tem enorme potencial de matérias-primas sustentáveis. É o caso do curauá, usado como tecido há séculos por povos indígenas. Hoje, a cultura em escala da planta está sendo pesquisada pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). 

Há muitas outras tramas interessantes nas florestas. Mas é preciso ter cuidado: a bioeconomia exige manter os biomas saudáveis, incluir os saberes dos povos tradicionais e gerar renda para eles. Um teste será o Programa Caminho Verde Brasil, anunciado durante a COP30: serão 30,2 bilhões de reais destinados para restaurar até 40 milhões de hectares de áreas degradadas com a produção sustentável de grãos, fibras e biocombustíveis.

“O Brasil pode ser um grande líder nessas fibras novas e naturais, muitas vezes subprodutos do agronegócio: há projetos com banana, laranja e cana de açúcar. Tem malva, juta, sisal. E agora estamos discutindo [a chegada do] plantio de cânhamo (atualmente proíbido em território nacional devido a sua origem Cannabis)”, diz Fernando Pimentel, CEO da Associação Brasileira de Indústria Têxtil (Abit). 

A agenda do empresário na COP30 incluiu economia circular, gestão de resíduos e descarbonização industrial. Sobre poliéster, a fibra de origem fóssil mais usada no mundo e mais importada no país, ele diz não haver bala de prata. “Seu custo é menor do que o de um produto que joga a favor do meio ambiente”, fala. “(Diminuir o uso) é uma jornada longa que envolve mercado, tecnologia, incentivos tributários e financeiros e regulamentação para aumentar o volume de reciclados nas peças de roupa.”

Em Belém, a Abit anunciou um estudo de diagnóstico com foco nos resíduos têxteis brasileiros. O objetivo é mapear o cenário nacional e criar um modelo amplo de logística reversa para o setor – potencialmente junto à plataforma federal Recircula Brasil, que foi renovada durante a conferência.

Uma nova lógica circular

Para Lourrani Baas, estilista e empreendedora na seara de reaproveitamento de tecidos, o poliéster – que vem principalmente da China – é o grande tubarão da sustentabilidade. “Por ser plástico, ele precisa de uma estrutura de reciclagem industrial e falta incentivo para tanto”, aponta.

Em Belém a convite da delegação brasileira, a baiana Lourrani sentia falta de design em roupas e acessórios sustentáveis. Formada em moda, ela se dedicou a criar com sobras e retalhos de tecidos sem origem fóssil. Além da marca própria (selecionada pelo #MovimentoELLE em 2022), fundou a Liga Transforma, uma startup de moda sustentável para qualificação profissional de mulheres em situação de vulnerabilidade social.

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Look de Inverno/Primavera 2024 de Lourrani Baas, na Casa de Criadores: feito com resíduos da Santista Jeanswear. Foto: Divulgação

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Como os fabricantes de tecido sempre têm sobras e poucas opções de descarte sustentável, quem bate à porta, como Lourrani, consegue o material de graça. A primeira etapa é separar essas tramas de acordo com textura, tamanho e especificidade: “Vejo se estica, se tem elastano, qual é a gramatura, qual é a cor e se essa cor vai ter transferência ou não”. 

Em seguida, vem a metodologia que ela ensina às mulheres da Liga Transforma: planejar a centimetragem e as margens de costura para que o tecido circular dure mais e tenha bom caimento. “Focamos no ponto da agulha da máquina, na escolha do corte e na direção do fio. Isso muda tudo no acabamento.” 

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Em Salvador, mulheres da Ilha da Maré com os resultados de workshop da Liga Transforma. Foto: Divulgação

É possível criar rolos de tecido circular, mas ainda há pouca procura: Lourrani vende mais peças prontas. Nas aulas para faculdades de moda, ela explica como tecido reaproveitado exige outra lógica criativa: é preciso adequar a ideia ao material recuperado, visto que ele terá gramaturas e emendas diferentes – só jogar em cima do manequim não vai dar certo.

O principal objetivo de Lourrani é escalar a metodologia de design sustentável da Liga e replicá-la em vários pontos do país, gerando renda e criando moda de baixo carbono. “Amo fazer roupas, mas posso agregar muito mais nesses espaços”, afirma.

Um catálogo oficial para as práticas sustentáveis no Brasil

Um dos eixos da COP30 foi a reforma do sistema financeiro, incluindo instituir regras globais de classificação para projetos sustentáveis. Normas nacionais começaram a valer no início de novembro, sob o nome de Taxonomia Sustentável Brasileira (TSB).

Uma taxonomia é uma palavra chique para catálogo. Nele, o governo federal publica diretrizes para padronizar o que conta como atividade sustentável no país. Bancos, governos e outros investidores poderão usá-lo para analisar negócios de fato sustentáveis (social e ambientalmente) usando um único padrão, que privilegia quem tem as melhores práticas.

Por enquanto há documentos específicos para 9 setores estratégicos, como saneamento e mineração. Comércio e varejo ainda estão por vir, mas dá para adiantar a lógica. Uma marca que tem gestão eficiente d’água, por exemplo, poderá coletar os indicadores e conformidades exigidos – como ter eficiência hídrica certificada por auditores – para captar crédito mais barato no mercado.

Embora a adesão à TSB seja voluntária, é ótima notícia, porque ela vai padronizar e incentivar investimentos verdes e políticas públicas. Linhas de crédito especiais e sistemas de fomento sempre foram essenciais para empreendedores de moda, e serão ainda mais na rota para a bioeconomia.

Um labirinto de recursos

Natural de São Gabriel da Cachoeira (AM), o estilista Sioduhi começou a Sioduhi Studio com a própria rescisão e um financiamento coletivo. A virada de chave veio um ano depois, em 2022, com o Programa Inova Amazônia, do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE). “Obtive um recurso não devolutivo para iniciar a pesquisa da Tecnologia ManioColor”, lembra ele, mencionando seu biocorante à base de casca de mandioca amazônica.

Além de novidade tecnológica, a Sioduhi Studio foi a primeira marca nortista a desfilar na Casa de Criadores, em 2024. Reconhecimentos como esses aumentaram as vendas e os contratos, e também a necessidade de crescer as operações.

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Look da Sioduhi Studio com a tecnologia ManioColor, da coleção “Amõ Numia: Ontem, Hoje e Amanhã”. Foto: Divulgação

Atualmente, a etiqueta está contemplada pelo edital Elos da Amazônia, promovido pelo Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (IDESAM) com recursos do Programa Prioritário de Bioeconomia (PPBio). Sioduhi tem mais dois canais de financiamento mapeados: a Agência de Fomento do Estado do Amazonas (AFEAM) e a plataforma de empréstimos coletivos Sitawi. Pensando nesse mar de siglas, o designer resume: “É um desafio de letramento”.

No papel de observador na COP30, Sioduhi, de etnia Piratapuya, sentiu falta de ações que fossem além do discurso. “Há uma certa romantização sobre bioeconomia e economia circular. Por outro lado, existem projetos realmente compromissados com as comunidades. A questão é ter mais investimentos que possam fomentar autonomia e continuidade.” 

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