Desfiles: de onde vieram, para onde vão

Mudanças na forma de se apresentar uma coleção, a reabertura do comércio e as denúncias das modelos brasileiras. Toda segunda-feira, a redação comenta as notícias de moda da semana.


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  • Nesta semana, o Pivô recupera a história dos desfiles desde os seus primórdios e tenta entender o que o mercado faz para se adaptar aos tempos atuais.
  • Paulo Borges, do São Paulo Fashion Week, e André Hidalgo, da Casa de Criadores, falam da importância dos desfiles e como as respectivas semanas de moda funcionarão ainda este ano.
  • Modelos negras denunciam experiências de racismo, discriminação e abusos morais que viveram em suas rotinas de trabalho no mercado de moda brasileiro.
  • A reabertura do comércio no país em cidades onde as curvas de contaminação e mortes causadas pelo coronavírus ainda seguem ascendentes.

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Nada de aglomeração nos bastidores. Nada de primeira fila. Nada de viagem para ver a última cruise collection. A pandemia da covid-19 obrigou a moda a replanejar todos os seus lançamentos. O calendário inflado, as superproduções dos desfiles e a oferta non stop de novas coleções, que já vinham sendo questionados há alguns anos, foram colocados em cheque pelas restrições impostas pelo novo coronavírus. O desfile virtual tem sido a solução adotada pelas marcas pra esse momento crítico. Mas será que a internet vai conseguir suprir a falta de uma boa passarela ao vivo, com a interação da plateia? Neste episódio, vamos recapitular a história dos desfiles de moda e tentar encontrar algumas pistas do que vem por aí.

Foi um estilista inglês radicado em Paris que inovou ao substituir pela primeira vez manequins estáticos por modelos vivas pra apresentar suas criações. Charles Frederick Worth, que era muito bom de marketing, teve essa ideia na segunda metade do século 19. Outros costureiros logo perceberam que as roupas ficavam muito mais interessantes quando exibidas por mulheres de verdade, e adotaram a ideia. Nas primeiras décadas do século 20, os desfiles de moda já reuniam uma seleta clientela em ateliês, salões de chá e também em lojas de departamento na Europa e nos Estados Unidos.

Nesses primórdios, os desfiles eram muito mais voltados pra venda direta às clientes, não tinha como objetivo a divulgação da marca. A presença de fotógrafos era terminantemente proibida, pra evitar que as peças fossem copiadas pela concorrência. Isso começou a mudar por volta dos anos 40. Em 1943, a publicitária norte-americana Eleanor Lambert teve a ideia de criar um evento em Nova York, que ela chamou de Press Week, ou semana da imprensa.

Até aquele momento, a moda girava em torno das coleções europeias. Mas com jornalistas, compradores e outros profissionais impossibilitados de sair do continente por causa da Segunda Guerra Mundial, Eleanor viu uma ótima oportunidade para alavancar a moda nos Estados Unidos. A Press Week acabou sendo o embrião da semana de moda nova-iorquina. Nas décadas seguintes, os fotógrafos passaram a ser aceitos nos desfiles e os eventos de moda se espalharam pelos Estados Unidos e por outras capitais europeias. Mas ainda eram apresentações bem comportadas, feitas para um público restrito.

Já nos anos 70, o cenário ficou mais animado. Os desfiles de prêt-à-porter ganhavam cada vez mais espaço. E com tantos designers mostrando suas coleções duas vezes por ano na França, o setor se viu obrigado a organizar melhor essas apresentações: era o início da semana de moda parisiense.

Na virada para os anos 80, em Nova York, estilistas passaram a realizar desfiles em clubs, lofts e até restaurantes. O designer Stephen Sprouse lotava seus eventos com figuras das artes plásticas e da música, como Keith Haring e Debby Harry, da banda Blondie. Em Londres, Vivienne Westwood quebrava de vez com a formalidade dos desfiles com sua moda anarcopunk. A década de 80 também teve o primeiro megadesfile da história. Para comemorar os 10 anos de sua marca, Thierry Mugler realizou uma apresentação aberta ao público, que comprou 6.000 ingressos e lotou a sala de espetáculos Zénith em Paris.

Com a chegada dos anos 90, vêm a era das supermodels. Linda Evangelista, Naomi Campbell, Cindy Crawford e Christy Turlington fizeram história nas passarelas. E também entrou para a história a frase de Linda: “Não me levanto da cama por menos de 10 mil dólares por dia”. Você levanta, Pat?

Ah, meu filho, qualquer R$ 500 eu já pulo da cama. Bom, a virada da década trouxe ainda os desfiles em locações inusitadas. Em 1989, Martin Margiela escolheu como cenário para seu desfile um parquinho abandonado na periferia de Paris. Alexander Mcqueen apresentou sua coleção de outono/inverno de 1996 numa igreja londrina.

Ao longo dos anos seguintes, a grandiosidade das apresentações ­- e a quantidade delas – só faria aumentar. A popularização do Instagram e das transmissões em tempo real pela internet acentuaram ainda mais a obsessão das grifes pelo espetáculo e por cenários deslumbrantes. A Fendi já desfilou na muralha da China e sobre as águas da Fontana di Trevi. Sob o comando de Karl Lagerfeld, a Chanel exibiu cenários com praia artificial, réplica de navio, supermercado e foguete simulando um lançamento ao espaço. Para apresentar as cruise collections, as marcas passaram a escolher destinos cada vez mais surpreendentes: Marrakesh, Shangai, até Cuba entrou no roteiro da moda.

Mas junto com toda essa overdose de apresentações espetaculares, começaram a surgir questionamentos. Qual o impacto ambiental desses megaeventos? A indústria da moda, não é segredo, é uma das mais poluentes do mundo. Como fica o descarte? Será que precisamos de tantas coleções por ano? Todas essas questões já estavam sendo debatidas há tempos pelo setor. Vale ler o texto de estreia no nosso site da colunista Marina Colerato, que fala justamente sobre isso. Com as restrições impostas pela pandemia, uma mudança no calendário e a busca por novos formatos de desfile tiveram que sair do campo das ideias e se concretizar, na marra.

A apresentação da coleção de resort da Chanel, programada para ser realizada na ilha de Capri, precisou ser adaptada para um estúdio, em Paris, e transmitida via internet, com cenas do Mar Mediterrâneo aplicadas ao fundo. No comunicado oficial, a grife destacou que trabalhou para reduzir a pegada ambiental e se empenhou no rastreamento de todas as matérias-primas utilizadas. Trabalhou com um número menor de looks e usou seda e algodão sustentáveis em várias peças da coleção. A maison reafirmou ainda no comunicado que reafirmava o compromisso com a Féderation Française de la Mode e de la Haute Couture e com parceiros, fornecedores e outros profissionais que, abre aspas, empregam milhares e milhares de pessoas e que perderam um grande número de pedidos devido ao lockdown”, fecha aspas.

A semana de moda de Londres também foi realizada em versão virtual. O evento, que originalmente seria de moda masculina, ganhou um direcionamento gender neutral, ou seja, sem uma divisão entre gêneros. Diante do cenário mundial, nem todos os estilistas conseguiram aprontar suas coleções a tempo. Mas a plataforma não se restringiu apenas aos desfiles virtuais. Incluiu também perfis dos participantes, entrevistas com os designers em vídeo, lives e outros conteúdos digitais.

Mas uma das iniciativas mais surpreendentes de novos formatos não veio de um evento nem de uma marca consagrada. Foi a apresentação da coleção da designer congolesa Anifa Mvuemba, pelo Instagram. Em um fundo preto, as peças em 3D de Anifa se moviam como se estivessem vestidas em modelos invisíveis. Vamos aguardar pra ver que soluções serão apresentadas nas semanas de alta costura em Paris e de moda masculina em Milão, em julho, que já anunciaram que serão digitais.

No Brasil, o primeiro grande evento a ser cancelado por causa da pandemia foi a São Paulo Fashion Week. Os desfiles estavam programados para ocorrer em abril, mas já em março a organização anunciou o cancelamento. Paulo Borges, criador do principal evento do calendário de moda brasileiro, falou com a gente sobre as mudanças que o setor precisa enfrentar e sobre a importância das semanas e desfiles de moda.

“Sem dúvida as questões de semanas de moda, desfiles, datas, calendário, têm sido questionados já há um tempo. E na minha visão muito mais pela engrenagem de excessos a que se chegou a moda, do que pela essência do que cada uma dessas coisas significam. O que significa uma semana de moda? Qual a função de um desfile? Eu acho que a gente não pode confundir os excessos provocados e causados pelo próprio mercado, por esta globalização excessiva, por esta produção excessiva, por esta loucura do fast fashion. E, quando eu digo fast fashion, eu não falo de uma moda que é mais acessível, mas sim do fast do fashion: esta loucura na qual toda engrenagem entrou, um sistema de ter que produzir mais, mais, mais e colocar as coleções mais rápido no varejo. E todas estas questões somaram em um desgaste de tal forma que é percebido há um tempo. Uma semana de moda tem a função de organizar um protagonismo de uma fala de moda. E ela tem uma data necessariamente para que ela aconteça chamando a atenção para o assunto, esta economia criativa. E um desfile é a oratória, a fala de um criador. Por isso que os desfiles são importantes no sentido de que eles têm algo a dizer, uma emoção, uma sensação e uma imagem de moda criada. Não é todo mundo que precisa fazer desfile, tem marca que faz desfile só uma vez por ano, tem marca que não desfila e tudo está dentro de um processo de moda. O importante é estar ali, com algo a dizer, com o que fazer. E esta engrenagem com toda a certeza já esta sendo repensada.”

Para Paulo Borges, as adequações no calendário da moda não podem ser pensadas de maneira genérica, já que cada mercado tem a sua particularidade.

“A gente não pode nesta discussão generalizar processos necessários quando a gente não olha para cada mercado de forma diferente. França tem um mercado muito específico. Se você sair da França os outros mercados não têm essa quantidade de desfiles ao ano. Não sei se o mundo vai seguir mais este modelo. Alguns lugares faziam vários outros desfiles, tinham estas coleções cápsulas que acontecem entre coleções. Não vai separar mais masculino de feminino, porque já vai estar junto. E este enxugamento se dá e ele tem que ser feito pensando na lógica de cada mercado. Ele não pode ser igual pra todo mundo. Os mercados tem que se adequar de acordo com a sua demanda e o seu propósito.”

Os desfiles de segundo semestre da São Paulo Fashion Week, que deveriam ocorrer em outubro, foram adiados pra novembro. E a ideia é que eles sejam realizados de forma presencial, com as apresentações acontecendo em alguns pontos da capital paulista, seguindo os protocolos de segurança que forem necessários. Paulo contou ainda que o evento terá uma plataforma digital exclusiva, que já estava nos planos mesmo antes da pandemia.

Já a nova edição da Casa de Criadores, que será realizada em agosto, vai ser totalmente digital, avisa seu fundador André Hidalgo:

“Desde que começou a quarentena a gente tem feito reuniões com os estilistas onde discutimos uma série de questões: do futuro da própria moda até o futuro da Casa de Criadores. Isso, tendo como pano de fundo o que está acontecendo no mundo inteiro, toda esta rapidez com que as coisas tem acontecido, todas as questões que têm sido levantadas e que são super importantes, urgentes. Mais do que nunca fez tanto sentido a gente fazer uma versão digital da Casa de Criadores. Então a gente vai fazer sim em agosto. estamos formatando como vai ser e está sendo um exercício muito bacana. Eu espero que todos gostem do resultado. Em breve vamos divulgar mais. Os estilistas querem e têm muito o que dize, o que discutir, o que colocar. Então aguardem porque teremos Casa de Criadores digital.”

Nem André Hidalgo nem Paulo Borges, no entanto, acreditam que o mundo dos desfiles vai virar algo totalmente digital ou continuar essencialmente presencial nas próximas temporadas. Mas serão, sim, uma mistura dos dois formatos. E ambos concordam que os desfiles digitais ainda precisam evoluir muito para chegar perto da experiência que uma apresentação física proporciona. Mas André Hidalgo está otimista.

“O que eu acho que vai acontecer daqui pra frente é uma mistura disso tudo. Para marcas que faz sentido continuar com um desfile físico, vai seguir. E, para outras, principalmente as que falam com um público mais jovem, a linguagem digital vai rolar e funcionar. O objetivo tanto de um desfile quanto de uma apresentação digital é você atingir o seu público. Para muitas marcas da própria Casa de Criadores faz muito mais sentido esta linguagem digital. E eu estou vendo que os estilistas estão pensando em coisas muito incríveis. Então eu acho que serão soluções que vão funcionar muito bem para determinados tipos de marcas. Quando tudo voltar ao normal entre aspas, quando sairmos de novo nas ruas e pudermos frequentar eventos com aglomerações de pessoas, eu acho que vai rolar um misto de formatos, apresentações, linguagens. Esta mistura de linguagens e plataformas eu acho que vai ser interessante. Eu acho que a moda vai ficar mais dinâmica e ter uma renovação tão grande quanto a gente não via há muito tempo.”

Seja qual for o formato dos desfiles, uma questão fundamental é o combate ao racismo na moda. No último episódio do Pivô nós falamos sobre a hashtag Blackout Tuesday, que rolou no dia 2 de junho, com as telas pretas postadas nas redes sociais. A ação repercutia virtualmente os levantes do movimento Black Lives Matter e foi como algumas pessoas e marcas tentaram indicar um apoio à luta por justiça racial. Na semana passada, nós já tínhamos citado alguns exemplos de como a ação pareceu vazia e revelou ainda mais uma indústria pouco comprometida em acabar com o racismo estrutural. Nos dias que se seguiram, os exemplos se multiplicaram. Marcas, como a tradicional Salvatore Ferragamo, e a Reformation, que era um case de sustentabilidade, foram alvos de denúncias. Nem o site Man Repeller, adorado por uma legião de fãs, escapou: uma enxurrada de acusações de ex-funcionários e de leitores, apontando incoerências entre discurso e prática, culminaram no afastamento da fundadora Leandra Medine.

E não demorou muito para que os casos brasileiros viessem à tona. Modelos como Thayná Santos, Camila Simões, Diara Rosa e Júnia Evaristo levantaram experiências de racismo, discriminação e abusos morais que viveram em suas rotinas de trabalho no mercado da moda. No centro das denúncias estão estilistas consagrados como Reinaldo Lourenço e Gloria Coelho, entre outras marcas e profissionais da área.

Ações práticas são esperadas. E, como a gente falava agora há pouco sobre o futuro dos desfiles, este tema é ainda mais urgente e deve pautar desde já qualquer caminho possível.

O percurso parece longo, mas a realidade é insustentável. Como diz a arquiteta e colunista da ELLE Brasil, Joice Berth, “o silêncio sempre facilita a ação de opressores”. E o silenciamento, esse temor de falar por medo de ser excluído, é também uma forma de violência. Para Joice, a única maneira de garantir que haja espaço para manifestações desse tipo é o apoio dos próprios colegas do meio ou a repercussão popular. É preciso que as pessoas estejam ciente de que essas violências estão acontecendo.

Para saber mais sobre esse tema, leia a matéria completa no site da ELLE Brasil.

E a gente não podia terminar esse episódio sem falar da reabertura do comércio no país. Apesar da curva de contaminação e do número de mortes provocadas pelo coronavírus continuarem ascendentes, as regras de circulação de pessoas já estão sendo flexibilizadas por todo o Brasil.

Em São Paulo, o comércio de rua e os shoppings foram autorizados a abrir na semana passada. Nos primeiros dias da liberação, a movimentação nas lojas foi intensa, e teve até fila em alguns estabelecimentos nas regiões centrais da cidade. O horário de funcionamento, por enquanto, é reduzido. Lojas de rua podem permanecer abertas das 11h às 15h e os shoppings, das 16h às 20h. Os estabelecimentos têm de seguir ainda uma série de protocolos de segurança, como adotar medidas de distanciamento social e disponibilizar álcool em gel. O uso de máscaras continua obrigatório.

Apesar dos corredores cheios dos shoppings, é importante lembrar que São Paulo é hoje o epicentro do coronavírus no país. Na mesma semana em que a quarentena foi flexibilizada, o número de mortos no Estado ultrapassou a marca de 10 mil. A covid-19 já matou mais de 40 mil pessoas em todo o Brasil e o número de mortes registradas diariamente continua a subir de maneira assustadora. Por isso, é preciso reforçar: se puder, fique em casa.

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