Quem é Édouard Louis, destaque da Flip?
O autor mais esperado da edição 2024 do evento literário reinventou a si mesmo, relatando esse processo em livro.
Édouard Louis poderia ser um personagem. Invenção de Eddy Bellegueule, o autor é resultado de uma ideia fixa do menino pobre, nascido no norte da França: uma forma de escapar, de ascender socialmente, de ser “alguém” na vida.
Nascido em 30 de outubro de 1992, Eddy se tornou Édouard depois dos seus 20 anos, a partir de um processo sistemático de osmose, se fundindo e emulando aqueles que julgava melhores, mais dignos. Primeiro, sua amiga Elena, e a família dela. Depois, o escritor e mentor, Didier Eribon, autor de Retorno a Reims (2009), livro no qual Louis enxergou também sua vida.
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O processo, digno de uma metamorfose, é descrito minuciosamente em Mudar: Método, lançado neste ano no Brasil pela Todavia. Depois de se debruçar na sua infância e “matar” Eddy (O Fim de Eddy, 2014), narrar a morte do pai (Quem matou meu pai, 2023) e por duas vezes a libertação da mãe (Lutas e metamorfoses de uma mulher, 2023, e Monique se liberta, 2024), ele conta como nasceu o autor francês mais esperado da 22ª Festa Literária Internacional de Paraty, que começa nesta quarta-feira (09.10): “Com pouco mais de 20 anos troquei meu sobrenome na Justiça, mudei de nome, transformei meu rosto, redesenhei o contorno das entradas de meu cabelo, passei por diversas cirurgias, reinventei a maneira de me mover, de andar, de falar, fiz desaparecer o sotaque nortista da minha infância”, enumera logo no início de Método.
Discípulo de Eribon, de Annie Ernaux (vencedora do Nobel de Literatura em 2022, o que ajudou a difundir o estilo memoir no Brasil) e, indo mais longe, de Foucault e da escrita de si, Édouard transforma a história pessoal em universal ao misturar memória e crítica social, casa e política, pobreza e preconceito. “Ódio da homossexualidade = pobreza”, escreve em Quem matou meu pai, livro em que relaciona as políticas francesas à degradação paterna.
“Em março de 2006, o governo Jacques Chirac, presidente da França por 12 anos, e seu ministro da saúde, Xavier Bertrand, anunciaram que dezenas de medicamentos, em grande parte medicamentos para distúrbios digestivos, não seriam mais reembolsados pelo Estado (…). Jacques Chirac e Xavier Bertrand estavam destruindo seus intestinos (…). Nicolas Sarkozy e Martin Hirsch estavam triturando suas costas (…), Emanuel Macron tira a comida da sua boca (…). A história da sua vida é a história dessas pessoas que se sucederam para abatê-lo”, escreve em Quem matou meu pai.
Édouard Louis e as camadas da miséria
“Não me julgue”, pede o autor várias vezes ao longo de Mudar: Método, uma espécie de acerto, de balanço com o seu passado e com as pessoas que fizeram parte dele.
E é por vezes compreensível querer julgá-lo, ao mesmo tempo em que esse gesto denuncia rapidamente o caráter burguês de quem o faz. Édouard pode, sim, ser visto como alpinista. Pode ser lido como traidor, aquele que escancarou a história da família, que usou pessoas ao longo da vida para chegar ao estrelato – hoje ele é um dos mais badalados nomes da literatura mundial.
Mas quem no seu lugar não faria algo parecido? Quem, se tivesse seu incômodo, sua determinação, seu talento não iria querer se reinventar e viver, em vez de apenas sobreviver mais um dia? “Agora me lembro, Elena disse rindo que meus dentes e minha mandíbula eram tão disformes que no dia em que eu morresse ela pegaria meu crânio para fazer um cinzeiro. Ela era a única que podia dizer essas coisas sem me machucar”, escreve em Mudar: Método. “Eu ainda não sabia que a humilhação ia me obrigar a ser livre”, aponta no mesmo livro.
Ao longo de suas obras, que ficam entre o memoir e o ensaio autobiográfico, fica claro o efeito da pobreza além da falta de comida. Para quem não sabe: miséria = vergonha. Miséria = violência. Miséria = viver pouco. Miséria = viver pouco e ter a sensação de que já se viveu muito. Miséria = televisão sempre ligada. Miséria = prisão. Miséria = sonhar no supermercado, não na ópera. Miséria = doença. Física e mental. Miséria = repetição da vida miserável de quem veio primeiro. Miséria = beber muito para esquecer. Beber bebida barata. Miséria = xenofobia, homofobia, racismo, preconceito. Miséria = dentes tortos. Miséria = relacionamentos abusivos.
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“Será possível estabelecer alguma coisa como o preço da liberdade, um preço quantificável racionalmente, matematicamente? Será que uma vez fixado e tornado acessível esse preço a uma maioria, novas fugas surgiriam, se multiplicariam infinitamente? Para dizer de forma mais clara, e portanto, mais violenta: quantas pessoas, quantas mulheres mudariam de vida se tivessem um cheque na mão?”, escreve em Monique se liberta.
No caso de Louis, miséria também é = mudança, como registra no livro, relato sobre a tardia independência da mãe. “Sem sofrimento na infância = sem livros publicados = sem dinheiro = sem liberdade possível.”
Em última análise, Édouard fascina pela clareza com a qual enxerga a vida. Seja a vivida com 700 euros para sete pessoas (ele tem quatro irmãos), seja a vivida em um sofá opulento feito com pelo de urso polar – “Tremi, mas não disse nada. Reprimi minha aversão, e ergui meu copo para brindar com ele”, escreve em Mudar: o método.
Num mundo e num país (Brasil) em que milhares de pobres usam parte da baixíssima renda em bets, enquanto poucos milionários passeiam aos domingos com Porshes e Ferraris, é fundamental ler Édouard Louis. É urgente entender que a diferença de classe é a maior violência da Terra. E que essa violência permanece grudada, mesmo para aqueles poucos que ascendem. Não há vitória sobre um passado de tragédia.
Édouard Louis em obras:
- O fim de Eddy (Planeta, 2018)
- História da violência (Planeta, 2020)
- Quem matou meu pai (Todavia, 2023)
- Lutas e metamorfoses de uma mulher (Todavia, 2023)
- Mudar: Método (Todavia, 2024)
- Monique se liberta (Todavia, 2024)
22ª Flip: de 9 a 13 de outubro, na Praça da Matriz, em Paraty (RJ). Mais informações aqui. As mesas têm transmissão ao vivo pelo canal da Flip no YouTube, e Édouard Louis participa do evento no sábado (12.10), às 19h.LEIA MAIS: LIVRO PASSA A LIMPO A NOITE ELETRÔNICA DE SÃO PAULO
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