SPFW N60: Ronaldo Fraga

Ronaldo Fraga volta às passarelas da SPFW após um hiato de 6 anos com homenagem a Minas Gerais e Milton Nascimento. 


Ronaldo Fraga, SPFW N60.
Ronaldo Fraga, SPFW N60. Foto: Marcelo Soubhia / Agência Fotosite



Depois de uma manhã na biblioteca com João Pimenta e uma tarde nos vagões da CPTM com Gloria Coelho, a noite do primeiro dia da SPFW N60 terminou com Ronaldo Fraga, no Museu da Língua Portuguesa. Foi o seu retorno aos desfiles presenciais, após seis anos de pausa.

Ronaldo Fraga, SPFW N60.

Ronaldo Fraga, SPFW N60. Foto: Marcelo Soubhia / Agência Fotosite


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Desde a pandemia, o estilista, conhecido por transformar a passarela em palco, vem refletindo sobre o formato tradicional de mostrar coleções. “Antes, parecia que estava apertado, e eu me sentia sozinho. Passava dias no Pará, em Pernambuco, na divisa do Rio Grande do Sul com a Argentina pesquisando a coleção, voltava e contava as histórias para quem assistia aos desfiles”, diz.

Em busca de experiências mais coletivas, Ronaldo abraçou o turismo. Ultimamente, ele tem acompanhado interessados em causos populares em expedições pelo Brasil. A moda, no entanto, nunca saiu de cena: ele continuou produzindo para sua marca própria, com loja no Mercado Novo, em Belo Horizonte. E foram as colaborações com projetos de artesãs mineiras, como o Casa Bordada, em Barra Longa, e o Crochetai-vos, em Barão de Cocais, que o fez rever a decisão anterior. “Elas adoram desfilar. É quando o nome da cidade delas aparece de forma positiva para mais gente”, explica.

Ronaldo Fraga, SPFW N60.

Ronaldo Fraga, SPFW N60. Foto: Marcelo Soubhia / Agência Fotosite


Ronaldo Fraga, SPFW N60.

Ronaldo Fraga, SPFW N60. Foto: Marcelo Soubhia / Agência Fotosite


Leia mais: Ronaldo Fraga explica figurino da última turnê de Milton Nascimento

Somado a isso, estava o desejo de fazer uma coleção sobre seu maior ídolo da música brasileira: Milton Nascimento. A vontade nasceu depois de o estilista produzir o figurino da turnê de despedida do artista, A última sessão de músicas, em 2022. Há quatro meses, ele recebeu a benção do mestre sobre a ideia de transformar sua vida em coleção – isso, antes de Milton ter uma evolução no quadro de demência por corpos de Lewy. A doença, com a qual foi diagnosticado aos 82 anos, atinge as células nervosas do cérebro que controlam o pensamento, a memória e o movimento corporal.

Para os shows do carioca mais mineiro que existe (Milton nasceu no Rio de Janeiro e se mudou criança para a cidade de Três Pontas, Minas Gerais), Ronaldo construiu um manto inspirado na obra de Bispo do Rosário. É uma adaptação dessa peça que abre o desfile de segunda-feira (13.10), em um menino que representa o músico nos primeiros anos de vida. Ele é sucedido por outros meninos negros com com asas de anjos feitas de papelão. Eles acenam para a plateia enquanto cruzam um chão com o desenho de trilhos de trem.

Ronaldo Fraga, SPFW N60.

Ronaldo Fraga, SPFW N60. Foto: Marcelo Soubhia / Agência Fotosite


Ronaldo Fraga, SPFW N60.

Ronaldo Fraga, SPFW N60. Foto: Marcelo Soubhia / Agência Fotosite


Leia mais: Biografia de Ronaldo Fraga documenta coleções e discute o lugar da moda

“Parti da infância, porque Milton, aos cinco anos, acompanhava a mãe e o pai nos ensaios do coral da igreja”, fala Ronaldo. Modelos adultos aparecem na sequência, mas o fio condutor continua sendo o lado lúdico dos primeiros anos da vida do cantor. Todos usam lâmpadas de led nas cabeças que formam o desenho do mar de morros de Minas Gerais – assim como a ilustração da capa de Geares, álbum de 1976. 

As roupas lembram vestes religiosas para uma procissão e seguem o estilo trapézio, um dos favoritos do designer. Elas funcionam como um caderno de desenho ou livro de colorir – não à toa, todo o processo de idealização da coleção está registrado em um diário com croquis, notas escritas e fotos grudadas, feito neste ano. 

As túnicas recebem patches, bordados, medalhas de santinhos e cortes à laser na diagonal para formar um xadrez tridimensional. Há versões que ganham mangas bufantes e um sistema interno para marcar a cintura.

Ronaldo Fraga, SPFW N60.

Ronaldo Fraga, SPFW N60. Foto: Marcelo Soubhia / Agência Fotosite


Ronaldo Fraga, SPFW N60.

Ronaldo Fraga, SPFW N60. Foto: Marcelo Soubhia / Agência Fotosite


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Tem o vestido “Caçador de mim”, homenagem à canção de 1981, com duas figuras se olhando. Há também um longo com pássaros presos por estruturas de barbatanas, como se os bichos rondassem a peça. Uma parte de alfaiataria e com pegada burlesca fazem referência à época em que Milton trabalhava nos bares dos anos 1950 com smoking e gravata borboleta. Já os jeans trazem o visual do cantor e na virada dos anos 1960 para os 1970.

Os trabalhos manuais são encontrados nas mais variadas formas: um longo de tule com mangas bufantes tem a letra da faixa “Maria, maria” (1978) escrita, crochês franjados reproduzem o formato dos cabelos dreadlocks e a trama aberta da renda richelieu azul deixa um forro de paetês da mesma cor aparecer para fazer as vezes de uma noite estrelada.

Ronaldo Fraga, SPFW N60.

Ronaldo Fraga, SPFW N60. Foto: Marcelo Soubhia / Agência Fotosite


Ronaldo Fraga, SPFW N60.

Ronaldo Fraga, SPFW N60. Foto: Marcelo Soubhia / Agência Fotosite


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A coleção paira sobre uma falsa ideia de simplicidade. “Há quem diga que o Milton seja simples, mas ele é extremamente sofisticado e trata de assuntos universais. Reproduziu com a boca o eco das cavernas, o barulho dos rios, da pedra e do trem. Nasceu aí a voz das montanhas do Brasil.” Ronaldo traduz isso em roupas de modelagens simplificadas que servem como base para detalhes ricos, de um jeito similar ao de passar a história no Brasil. Por meio da palavra falada, costumes, valores, crenças e modos de ver o mundo são preservados e transmitidos. Como um narrador popular, Ronaldo mantém viva uma importante memória do país.

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