Como foram suas primeiras experiências?
Heterossexualidade compulsória e outros devaneios no mês do orgulho LGBTQIAP+.
Eu sempre tive certeza de como teria que ser meu primeiro beijo. Como uma jovem que cresceu assistindo O diário da princesa e basicamente todos os filmes da Disney, precisava que fosse épico, com o pezinho levantando, vindo de um príncipe encantado, aquele que seria um amor pra vida toda. Aos 14 anos aconteceu aquilo que era tão sonhado e, bom, foi ruim. Pra ser mais exata, foi péssimo, frustrante e, o principal, uma mentira no quesito “primeiro beijo”.
A verdade é que eu já havia “treinado” esse beijo com algumas amigas minhas. A maior verdade ainda é que não só o beijo, mas a maioria das minhas iniciações sexuais foi com outras meninas.
Hoje percebo o quanto tudo isso é incontestável, mas a ideia da legitimidade apenas voltada para as vivências heterossexuais é tão enraizada que só décadas depois consegui me dar conta disso com clareza.
Por isso que a jornada de uma educadora sexual (ou qualquer outra profissão que permeia a sexualidade) sempre vai ter como atravessamento os estudos e teorias lidas dentro da própria vivência e prática. Talvez, se não estivesse tão imersa na complexidade do desejo e do corpo humano, não teria me dado conta de que nunca foi aquele irmão mais velho da minha amiga, sempre foi a própria amiga.
Mais recompensador do que entender melhor um capítulo pessoal tão importante é viver o privilégio de abrir o diálogo para o âmbito coletivo, porque eu sei que não fui a única a passar por esse tipo de apagamento das experiências nascidas fora do padrão heteronormativo.
Em junho celebramos o Mês do Orgulho LGBTQIAP+ em todo o mundo (ou pelo menos é o que deveria ser, porque o que aconteceu em Stonewall com Marsha P Johnson foi grandioso o suficiente para que a mensagem rode todo o globo) e, nossa, como isso me faz enxergar o mês com tanto carinho!
É mágico presenciar como o amor por si mesmo e pelos outros resiste e floresce apesar dos pesares; igualmente mágico ver as paradas pelas cidades afora, as celebrações, as lutas, a comunidade unida nas suas diferenças, ver que somos tantos.
“Talvez, se não estivesse tão imersa na complexidade do desejo e do corpo humano, não teria me dado conta de que nunca foi aquele irmão mais velho da minha amiga, sempre foi a própria amiga.”
Como uma forte representante da letra B (e que também se vê muito dentro da letra P e Q, mas entende que isso é papo pra outra coluna), é impossível não se emocionar, seja com raiva e indignação ou alegria e excitação.
Temos muito chão ainda a percorrer, direitos a serem conquistados, respeito a ser garantido, bastante a ser aprendido com pessoas como Erika Hilton, Marielle Franco, João Nery, Laerte Coutinho, Duda Salabert, Jonas Maria, Erica Malunguinho e tantos outros nomes importantíssimos que passaram e seguem passando por esse mundo doido que nos balança entre a desesperança e o quentinho no coração.
Mas, se de um lado temos exemplos de luta e força que literalmente salvam vidas, do outro temos pessoas como o pastor André Valadão, que dias atrás vomitou absurdos como “Deus odeia o orgulho”, na tentativa de gerar caos e uma atenção maior do que ele merece, quando sua real preocupação deveria ser com os amigos e colegas da sua igreja presos por cometerem crimes hediondos envolvendo exploração infantil.
Até hoje não tenho uma certeza plena sobre o que é Deus ou o que essa palavra deveria significar. E gosto de ficar na dúvida, porque a vida ensina que as certezas absolutas são prepotências ingênuas que acabamos criando.
Seja lá qual for a verdade sobre os Deuses que nos cercam, imagino que não seriam forças capazes de odiar a capacidade de amar e/ou se orgulhar por não desistir de sentir no corpo as delícias que ele é capaz de sentir. Isso requer muita coragem, honestidade e apaziguamento interno.
Muito me preocupa o discurso através do pânico moral que cria fantasmas como “kit gay” e “agenda para sexualizar crianças”, porque esse outro lado, às vezes, pode nem perceber, mas já está sexualizando tudo e todos desde sempre: desde o momento que o menino nasce e o pai fala que “esse vai dar trabalho”, da mania de falar que colegas do jardim de infância são “namoradinhos” só porque são de gêneros opostos, da fabricação exagerada de filmes infantis pautados em homens e mulheres jovens se casando praticamente do nada, apenas “porque isso é o certo”.
“A vida inteira fui treinada para ser heterossexual, mas, felizmente, nunca consegui cumprir tal objetivo social.”
Voltando ao momento em que minha ficha caiu, contada ali no início da coluna, vejo hoje que a vida inteira fui treinada para ser heterossexual, mas, felizmente, nunca consegui cumprir tal objetivo social.
Nunca vou esquecer da sensação ao sair no meu primeiro date oficial com uma garota, o orgulho de segurar a mão dela mesmo num shopping conservador de Goiânia, a compra dos ingressos no cinema (coisa que já havia feito inúmeras vezes, mas sem tamanha importância), a falta da necessidade de mascarar ou esconder aquilo, a vontade de viver sem culpa ou diminuição aquela troca que eu sempre desejei, mas sentia tão brutalmente afastada. Essas borboletas no estômago até hoje ninguém me tira.
Por isso, quero desejar toda a paz do mundo no jeito de viver os afetos a cada uma dessas letrinhas que estão na sigla (que segue crescendo forte, já que inclusão e visibilidade é isso). A paz, meus caros leitores, é a melhor e maior coisa que pode existir nas nossas vidas. É justamente a falta dela que causa discursos vindos de bocas amargas e apodrecidas de tanto veneno.
Desejo a vocês a boca doce pra propagar a voz, beijar, lamber, gritar, lambuzar, dizer que ama, que goza, que quer, que vive. Desejo que todes possam desejar, sem medo e sem culpa.
Clariana Leal é educadora sexual e carrega como propósito a abertura honesta e inclusiva do diálogo sobre sexo, desejo e corpo. Na sua coluna Prazer sem dúvidas, ela responde mensalmente as dúvidas do público da ELLE.
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