Meu prazer é político

Sobre atos revolucionários através do prazer e a capacidade de certos governantes de acabarem com todo nosso tesão.


Coluna Clariana 2 01
Ilustração: Mariana Baptista



Quando falo que tudo que fazemos é político, inclusive sexo, muita gente ainda torce o nariz ou faz cara de quem não entendeu, o que eu realmente acho bem compreensível, porque, de fato, nunca tivemos abertura pra esse tipo de conversa. Mas como boa adepta ao “antes tarde do que nunca”, quando me perguntam o que diabos a política tem a ver com os momentos íntimos, de pronto posso falar sobre o acesso a métodos contraceptivos, uma questão básica de saúde pública, que deveria ter a devida atenção do estado, assim como assistência a vítimas de abuso sexual, diálogo sobre planejamento familiar, desmistificação de tópicos sobre gênero e sexualidade, informações e tratamentos contra infecções e doenças sexualmente transmissíveis, culminando nesse amontoado de cuidados e diálogo chamado de educação sexual. Termo esse que, infelizmente, tem sido alvo de ataques e mal-entendidos intencionalmente construídos de umas eleições pra cá.

Escrevo esta coluna com o coração partido, porque sei que o caminho que o Brasil tomou nos últimos cinco anos nos afasta de uma saúde sexual consciente e saudável no âmbito coletivo. Me vejo tendo que explicar que nenhuma escola ofereceu mamadeiras em formato de pênis, “kit gay” ou qualquer outra coisa ridiculamente absurda pras crianças. Essa é uma coisa que eu nunca, em todos os anos trabalhando com sexualidade, imaginei que precisaria rebater ou argumentar. É como se todo o tempo e energia preciosos que poderiam ser investidos em coisas verdadeiramente capazes de melhorar a vida, seja ela afetiva, sexual ou social, estivessem sendo desperdiçados diante de nossos olhos. E, nossa, como me irrita perder tempo. 

Expectativa x Realidade

Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais, a educação sexual é tida como um tema transversal, ou seja, assuntos relacionados à sexualidade devem ser trazidos por cada disciplina da maneira que o professor ou professora preferir. Está escrito no documento disponibilizado pelo MEC: “Optou-se por integrar a Orientação Sexual nos Parâmetros Curriculares Nacionais, por meio da transversalidade, o que significa que tanto a concepção quanto os objetivos e conteúdos propostos por Orientação Sexual encontram-se contemplados pelas diversas áreas do conhecimento. (…) Cada uma das áreas tratará da temática da sexualidade por meio da sua própria proposta de trabalho.” Ou seja, na aula de biologia, pode ser falado de anatomia, na de história sobre a construção das relações, e por aí vai. Mas existe algum preparo desses professores e espaço seguro pra que isso seja feito de uma maneira eficaz, ajudando e protegendo as crianças e adolescentes? Eu acho que não (pior, eu sei que não). No Volume 10.2 de Orientação Sexual do documento, vemos tentativas de instruções como: “A escola deve informar e discutir os diferentes tabus, preconceitos, crenças e atitudes existentes na sociedade, buscando, se não uma isenção total, o que é impossível de se conseguir, uma condição de maior distanciamento pessoal por parte dos professores para empreender essa tarefa” mas sabemos que o estrago da polêmica já está dado e ainda há muita insegurança e medo de abordar o tema pelo caminho. 

Como já trouxe, com muita dor, numa outra coluna de meses atrás, uma educação sexual pensada de maneira responsável e honesta é capaz de salvar e proteger muitas vidas. O ato de nega-la ou desencoraja-la vem carregado de consequências pesadas, que já nos acostumamos a carregar no corpo. Ao ver a ex-ministra Damares promovendo a “educação sexual” de abstinência, vimos também que a taxa de gravidez precoce no país continua subindo e tendo um percentual 30% maior que a média mundial. Vimos 35% dos jovens de 13 a 17 anos afirmando ao IBGE que não usaram nenhum método de proteção contra gravidez e doenças (ou infecções) sexualmente transmissíveis. Dados aterrorizantes que poderiam ser amenizados, se a atual política não fosse tão inimiga da informação. Um dos estudos mais completos sobre tipos de abordagens educacionais com foco em sexualidade nas escolas (EUA), feito em 2016, e com 37 revisões de literatura, que incluíram 224 estudos clínicos, concluiu que “intervenções focadas em abstinência são ineficazes para promover mudanças positivas no comportamento sexual. Em contraste, intervenções abrangentes, programas focados na prevenção do HIV e clínicas nas escolas demonstraram ser efetivas em melhorar conhecimento e mudar atitudes e comportamentos e resultados relacionados à saúde”.

Deixe meu orgasmo em paz

Mas não quero me repetir. Hoje a intenção é falar de prazer, ou pelo menos de como ele é afetado e atravessado pela política em que estamos inseridas. É difícil ter tesão quando o caos ao redor está completamente instalado e nos vemos pequenas diante de homens poderosos (que na realidade são minúsculos) que odeiam mulheres, eu sei. Vez ou outra recorro à tal da mastubação medicinal, na tentativa de diminuir os níveis altíssimos de cortisol (hormônio do stress) com o superpoder do combo de serotonina, ocitocina e endorfina trazidos pelo ato, mas o prazer mesmo parece ter ficado adormecido junto com a saúde mental de centavos de quem tem apenas sobrevivido às últimas notícias. Pra além da nossa bolha, trazendo mais a fundo a realidade desse país-continente complexo, ainda temos o peso multiplicado por mil dentro da vida de mulheres indígenas, pretas e periféricas, as mais afetadas nesse e em vários outros quesitos. Como gozar tranquila se você precisa sempre lutar e se preocupar muitas vezes mais pra acabar recebendo muito menos? Não que o país fosse um paraíso pra todas antes, longe disso. Mas que piorou muito e que nossa libido e sanidade acabam pagando o preço, isso é inegável.

Não basta a inflação ter praticamente triplicado a média de preço dos vibradores, criando empecilhos financeiros ao bem estar sexual, o Itamaraty se pronunciando contra o “uso indevido” de termos que não teriam definição clara, como “serviços de atenção à saúde sexual e reprodutiva”, sendo que a definição está cristalina e literal e diz sobre cuidados capazes de salvar a vida de mulheres; o terrorismo que fazem contra a equidade de gênero, que acaba atrapalhando a equidade de prazer, culminando no que chamamos de gap do orgasmo; termos como “saúde sexual” sendo cortados de projetos no congresso etc., numa lista triste e gigante, ainda temos que escutar um senhor de quase 70 anos puxando um coro de “imbroxável”, o que não só é fisiologicamente mentira, mas também a coisa mais broxante de todos os tempos. Diante de tudo isso, como não dizer que ir em busca do prazer e do bem estar sexual no Brasil é um ato revolucionário?

Resolvi investigar no Instagram com meus seguidores e o resultado foi: 60% das mulheres afirmaram não terem tesão pra nada em tempos eleitorais, enquanto 48% dos homens disseram não ter a libido afetada nesse período. Isso não me surpreendeu, visto que são as mulheres que mais sofrem as consequências das decisões tomadas nas urnas por toda população. A verdade é que a tragédia anunciada do atual governo acabou sendo o grande empata-foda dos últimos quatro anos. A libido é algo que flutua o tempo todo. Se a vida parece uma montanha-russa, ela também vai subir e descer junto com os momentos que passamos. E uma certeza que a maioria de nós pode ter nesse processo todo é: se não conseguimos relaxar, não conseguimos gozar. 

Buscar caminhos pra burlar toda essa loucura em que estamos inseridas é capaz de transformar o bem estar individual em algo maior e coletivo. Se por um lado nos abatemos e nos sentimos impotentes diante da falsa potência de alguns, por outro podemos criar mecanismos de defesa que nos levem para um direito nosso que é irrevogável: o de viver bem. Sei que é difícil, e muita gente parece não querer facilitar, mas enquanto o discurso do ódio estiver espumando na boca deles, não devemos fechar nossas bocas pra falar de prazer. Meu corpo é capaz de sentir tudo, a tristeza, o luto, o medo, e também o deleite, o arrepio, o relaxamento pós-orgástico. Seguimos na montanha-russa, hora com frio na barriga de vir algo que possa ser ruim, hora com o frio na barriga gostoso de uma curva iluminada que está chegando. Eles podem até tentar marginalizar nossa anatomia e promover aversão pelas coisas mais belas e naturais que possuímos, mas aqui existem quase 109 milhões de brasileiras, número que significa potência e possibilidade de lutas por direitos que sempre foram nossos. Cada vez que percebo isso, percebo também que meu prazer é político e meu gozo surge como uma afronta, porque no fim ele acaba sendo resistência. Se mulher cansada não faz revolução, desejo descanso e prazer pra todas nós nesses próximos dias. Seguimos.

Clariana Leal é educadora sexual e carrega como propósito a abertura honesta e inclusiva do diálogo sobre sexo, desejo e corpo. Na sua coluna Prazer sem dúvidas, ela responde mensalmente as dúvidas do público da ELLE.

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