Noites sem respostas: por que a moda incomoda tanto?

Exclusividade, elitismo, preços proibitivos, insatisfação perene, sonhos inalcançáveis, desejos impossíveis. Mas é só isso?


coluna luigi 2023 3



Dia desses, um RP de uma grife de luxo contou os dramas dos “amigos da marca” que não cabem em nenhuma peça disponível no acervo. Tem choro, desilusão, negação e pânico. Numa manhã dessas, uma criadora digital lamentava um dos seus piores dias dos últimos tempos. E não eram nem 10 horas. Tempinho depois, suada com o look favorito de treinar, mandou outro post, agora com mensagem meio motivacional e meio superação pessoal. Não fossem as atividades físicas, coitado do bem-estar. Equilíbrio é tudo, uma boa academia, personal trainer e coaching idem. Vida que segue. Pelo menos nas redes.

Parecem assuntos desconexos, né? Nem tanto. São pontos de vista distintos sobre o desconforto e a insatisfação perenes que nos assombram. Dá para pensar no causo do amigo fora das medidas como causa da vida dependente de boas métricas e engajamento da criadora digital (consequência). É assim, ó: a calça não fechou, o zíper não subiu, o problema é seu. Cabe a você – somente a você – fazer algo a respeito. Nem pense em jogar seus problemas no colo de outrem. A menos que esteja disposto a pagar por isso, aí tudo bem. 

Se o dinheiro anda pouco e os boletos, muitos, não se desespere. Tem solução. Demora um tantinho mais, os resultados ficam ligeiramente aquém do ideal representado pelo dono do feed alheio, mas tem solução. Basta acreditar, entregar, se comprometer e engajar ao máximo com conteúdos da sua jornada. Bora servir de exemplo. 🌸🌞🙏🏻

Veja bem, não quero transformar meu pessimismo em via de regra. No entanto, não cansa? O treino eu sei que cansa, e depois dele? Como você tá fora dos stories da academia? É positivo se esforçar para sair de uma pior, ficar saudável, aliviar a pressão de maneiras menos autodestrutivas. Se for isso mesmo, showzão. Te faz bem? Pronto. Só não pára de ler, por favor, ajuda aí na audiência. Empatia.

O problema, penso eu, é quando a coisa vira mais um modelo a ser seguido, almejado, sonhado e para quebrar a cara de todo mundo no final. Frustrações, incômodos, desconfortos e infelicidades evergreen, nunca datados, sempre na moda.

Ai, pera. Falou de moda, lembrei de algo que li sobre o assunto.. Onde mesmo? Eis o mistério da fé. Foram duas noites revendo anotações em livros, folheando revistas, passando de link em link no histórico do browser, assistindo a série documental pela sei lá que vez, até que a memória parou de palhaçada e deu sinais concretos. Li em uma entrevista de janeiro deste ano com Miuccia Prada e Raf Simons. Glória! Vamos checar? Agora não, hoje só amanhã. E no amanhã, esqueci. 

Recordei tarde da noite e aqui está:

“Há diferentes maneiras de olhar para isso. A primeira é que as pessoas têm medo de falar sobre moda. Porque isso toca na sua (natureza) íntima: você tem que falar de você, do seu físico, talvez até da sua fraqueza. Durante toda a minha vida, me perguntei por que a moda é considerada tão barata e tão trivial em muitas situações. Esse é um dos motivos. O outro depende de como você se posiciona na política. Sempre me proibi de falar em público sobre política. Sendo uma estilista rica, me sinto desconfortável. Talvez esteja errada, mas ainda assim, me sinto desconfortável.” – Miuccia Prada

A pergunta era se ela e Raf, codiretores de criação da marca fundada pelo avô dela, sentiam que a moda recebe reconhecimento pelo seu valor cultural e financeiro, dado os milhares de empregos gerados e contribuições significativas com algumas economias regionais.

Tem várias formas de interpretar e analisar a resposta – não tô nem aí. Aqui, vamos focar na palavra intimidade. Pois intimidade é babado, bagunça tudo. Muitos querem, poucos sabem lidar. E só piora num mundo em que o que se vê por toda parte é, quase sempre, o completo oposto do que se sente por dentro, do que se é por fora. Piora mais ainda quando as cartilhas de “adequação”, “superação” ou “conquista” do modelo vigente mentem na cara dura. Frustração abissal, sensação de falha recorrente. 

Mentiras sinceras interessam, soluções falsas não. Não ajudam. Corrigindo: ajudam quem lucra com elas. Sorte a deles o buraco ser tão embaixo. Se jacaré é tronco para quem se afoga, vale mais sair da água do que aprender a nadar. Exagerei, né? Perdão, adoro um clichê. Enfim, o sufoco da insatisfação é tanto que não há tempo nem ar para entender por que e quem regula o nível de oxigênio. Ixi, de novo.

Rolou um rebranding, uma atualização na estratégia de marketing e de comunicação. A partir de então, a moda deu de se vender como criadora de sonhos, escolhas, criatividade e mudanças. Alô, Procon?

Vamos do começo então. Do começo mesmo, lá no limbo entre a Idade Média e o Renascentismo. São dessa época os primeiros registros de uma moda parecida com a que conhecemos hoje. Funcionava assim: as classes mais altas, que podiam pagar, investiam em novidades para deixar evidente seus privilégios (demarcação social que chama).  Contudo, de tempos em tempos, aparecia um jeitinho de reproduzir o que a nobreza vestia, comia e fazia. E vamos de gritaria, dedo no cu confusão e tapa na cara na corte. Ultraje! Ui ui ui. Alguém inventa algo impossível de ser copiado, pelamor.

Pronto, fez-se a moda. Um sistema efêmero, sazonal, baseado no descarte e na renovação constante. Ao longo dos séculos, essa indústria se firmou e cresceu sobre conceitos estéticos e visuais. Quando começou a dar ruim (ou quando quem mandava na porra toda percebeu que podia ganhar mais), veio o joguinho de sedução barata, infalível e falacioso. Não dava para ficar enclausurado naquele clubinho, com associados envelhecendo e aquele cheiro de naftalina.

Rolou um rebranding, uma atualização na estratégia de marketing e de comunicação. A partir de então, a moda deu de se vender como criadora de sonhos, escolhas, criatividade e mudanças. Alô, Procon? Na prática, a variedade é reduzida, as transformações nada expressivas e a criação, limitada. Só o sonho é de verdade. Tão de verdade que nunca se torna realidade. O resultado é o silenciamento, a invisibilidade e a exclusão de qualquer um que não se encaixe nos limites estreitos pré-estabelecidos. Novas carteirinhas de sócios para aquele clubinho, só de vez em quando para fingir que há vagas e que quem se dedicar muito pode, quem sabe, ser bem-vindo. Quer tentar? Pega aqui essas sugestões.

Por que a moda incomoda tanto? Essa é fácil, porque mantém boa parte das pessoas se sentindo aquém de um suposto ideal. Difícil não odiar e tentar derrubar quem te afasta dos seus sonhos, impede sua completude, te coloca pra baixo, exclui e diz não, você não está na lista.

Tá caro, né? Tem solução, dizem (geralmente os mesmos que advogam pela meritocracia). Se esforça no trabalho, dá tudo de si, mantém o foco, coloca todo o resto de lado, acorda às 4h da manhã (parece que ficamos mais produtivos nesse horário) e não deixa nada se colocar entre você e seu plano de carreira. Ou você não quer ser bem sucedido? No pain no gain, bebê. O casamento acabou? Um familiar adoeceu? Alguém morreu? Puxa, que triste. Sentimos muito. O call de amanhã tá de pé? Fez o post motivacional para os seguidores? Finge que nada aconteceu ou faz de conta que é o rei da superação e mostra sua força, sua garra.

Se bater uma bad lá em casa, na madruga boladona (descanso é sinal de fraqueza, de não se levar a sério e de falta de comprometimento), lembra do manual de wellness. Seu sonho tá logo alí. Talvez ajude atrasar alguns aluguéis e comprar aquele look do último desfile que tá todo mundo falando sobre. Vão me olhar diferentes, meu chefe principalmente – talvez até um chefe de outra empresa. E chega de humilhação no flerte. Foda-se, é isso. Contenção de gastos mode on.

Saco. Não tem no meu número. Tem umas peças parecidas, aperta um pouco, me acho esquisito. Ai, tantas privações, né? E as taxas de juros? Não foi em vão. É melhor do que nada. Eu preciso, eu mereço. Uma dessas dietas malucas, treino que queima tudo, derruba a pressão e lesiona a coluna devem resolver. 

“A desejabilidade social de uma versão impossível de beleza serve para atormentar todos aqueles que não podem alcançá-la e pressionar aqueles que supostamente conseguem. Isso resulta na normalização da insatisfação corporal, que traz sérias consequências.” – Tansy E. Hoskins, no livro Stitched Up: The Anti-Capitalist Book of Fashion.

Se não resolverem, tem os mantras reconfortantes (?): “não seja magra, seja saudável” ou “não fique obcecada em ter uma vida 100% saudável, mas evite comidas que não sejam saudáveis”. Aceita que dói menos. É cruel o que exigem da gente, esse corpo lá no anúncio é todo retocado. Eu, hein? Nada body positive isso aí. Quero mais é ficar bem comigo mesmo. Pena que só entra na festa, é promovido, pega geral quem parece com aquele modelo fia da puta (ops).

Vou meditar para me acalmar, lembrar da positividade. Eita! Me falaram que positividade é tóxica. Se for, vai de body neutral. Tá, essa tem de funcionar. Meu CPF é meu CNPJ, minha CLT não sei onde está, nunca usei, ainda bem, tantos descontos. PQP, chegou outro boleto? Abro depois, essa hora é a que mais engaja nas redes. Tô bonita, pareço feliz? Ninguém quer ver tristeza, eu não fico triste. Limpa, limpa, limpa todo ódio coletivo, taca cândida nesse pessimismo.

Cada coraçãozinho na tela é um abraço. Gratidão aos que me ensinaram a reprimir afastar energias negativas. Wellness cura tudo, graças a deus e ao coach. Quem não pode que lute. Pois eu lutei. Não venci, ninguém precisa saber, sou uma guerreira, não desisto nunca. Boa sorte. E shake, shake, shake o shot de saúde e bem-estar. Devo estar errando a dose. É colocar a cabeça no travesseiro para lembrar de toda aquela merda (ops 2).

Um estudo recente, feito pela Stem4, entrevistou 1.024 pessoas entre 12 a 21 anos no Reino Unido. Quase metade delas disseram que se tornaram retraídas, começaram a se exercitar excessivamente, pararam de se socializar completamente ou se automutilaram por serem regularmente intimidados ou trolados na internet devido à sua aparência física.

Por que a moda incomoda tanto? Essa é fácil, porque mantém boa parte das pessoas se sentindo aquém de um suposto ideal. Difícil não odiar e tentar derrubar quem te afasta dos seus sonhos, impede sua completude, te coloca pra baixo, exclui e diz não, você não está na lista. Qualquer indício deslize e o fósforo já é riscado. O material é altamente inflamável. Combustão instantânea. Vide o auê sobre os animais de mentira na alta-costura da Schiaparelli

Polêmicas incendiárias, cheias de comentários apontando a moda como a reencarnação do capeta, o grande mal da humanidade. E tem muita verdade aí no meio. O que não falta é diabo vestido de Prada. Estamos falando de uma das indústrias mais poluentes, uma das mais complexas no rastreamento da sua cadeia produtiva e uma das menos transparentes. Sem contar o impacto psicológico e social que causa nas pessoas. 

Longe de mim tentar beatificar santo do pau oco. E não pensem que já não passei por situações similares. No entanto, seria a moda o próprio inferno ou algo engolido por ele?

“A história dos seres humanos é repleta de alterações e marcações corporais. Os corpos sempre foram usados para expressar as práticas sexuais, religiosas, culturais e a geografia de períodos específicos. No entanto, nunca as tentativas de modificação foram tão difundidas, nem o ‘ideal’ tão fora de alcance. A desejabilidade social de uma versão impossível de beleza serve para atormentar todos aqueles que não podem alcançá-la e pressionar aqueles que supostamente conseguem. Isso resulta na normalização da insatisfação corporal, que traz sérias consequências”, escreveu Tansy E. Hoskins, no livro Stitched Up: The Anti-Capitalist Book of Fashion.

Um estudo recente, feito pela Stem4, entrevistou 1.024 pessoas entre 12 a 21 anos no Reino Unido. Quase metade delas disseram que se tornaram retraídas, começaram a se exercitar excessivamente, pararam de se socializar completamente ou se automutilaram por serem regularmente intimidados ou trolados na internet devido à sua aparência física. Quatro em cada 10 disseram que estão com problemas de saúde mental, com quase um em cada cinco enfrentando problemas de imagem corporal e 14% com dificuldades alimentares, como alimentação restritiva extrema, compulsão alimentar e vômito. 

De acordo com a pesquisa, os principais responsáveis são as redes sociais. Acontece que o padrão de beleza e as imagens que balizam essa ideia não são criações dos seus usuários. São reflexos de um sistema baseado em renovação periódica, obsessão pela juventude, desejos inalcançáveis e insatisfação perene. E aí vem outra questão: essa lógica foi inventada pela moda?

No livro O império do efêmero, o pensador Gilles Lipovetsky argumenta que sim. Porém, em determinado momento da história recente (primeira metade do século 20), o fenômeno moda, como ele chama, se tornou a base de um sistema movido pela insaciável necessidade de novidade, pertencimento, atualização e ascensão social. Em outras palavras, o sistema que deu origem à moda tal qual conhecemos foi cooptado pelo capitalismo.

Se antes era algo limitado à materialidade, ao produto, hoje atinge comportamentos tão fundamentais quanto a sexualidade, o desejo e o próprio corpo humano. Manter a insatisfação atuante na mente e na vida das pessoas permite mais formas de capitalizá-las. Satisfação plena não dá lucro.

Os ataques e críticas à moda – bem válidos – não estariam mirando no alvo errado? Tem como corrigir o todo quando só vê uma parte? Do mesmo jeito que a moda foi cooptada para perpetuar, acelerar e intensificar a lógica capitalista, será que o bombardeio digital não é um artifício para manter o descontentamento latente? E os agentes do mercado, por que tão apegados a um pseudo elitismo e exclusividade so last season? Será que a mudança é realmente desejada? Por quem, hein?

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