O prazer pelo prazer
No dia 31 de julho, é comemorado o Dia do Orgasmo. Bom momento para lembrar que as mulheres não precisam se justificar por gostar, simplesmente, de se masturbar e gozar.
Como uma educadora sexual que já está aí há alguns bons anos, falando diariamente sobre a sexualidade humana e os benefícios de explorá-la e investigá-la cada vez mais a fundo, já escrevi inúmeros textos (inclusive aqui, no Prazer sem dúvidas) sobre como a masturbação é um ato de autocuidado e autoamor importante, sobre os benefícios para a saúde que se conhecer pode trazer, sobre os rituais pensados passo a passo para aproximar as mulheres do próprio corpo etc.. Tudo de uma extrema importância e honestidade. Mas será que a sexualidade feminina se resume a autocuidado? Será que para se tocar, uma mulher precisa sempre de um banho relaxante, velas, contexto romântico, e várias outras floreadas que fogem do tesão e da vontade pela vontade? Eu acredito piamente que não, e te digo os motivos aqui.
Essa ideia é danosa por diversas razões. Primeiro, ela surge como se houvesse alguma diferenciação entre o cérebro masculino e o feminino quando se trata de tesão, algo já desmentido pela ciência. Todos nós temos capacidade de desejar, de ter um corpo erógeno e de sentir prazer. Sem distinção de gênero. Mas, claro, há uma imensa diferenciação quando falamos da construção de narrativas acerca da própria sexualidade entre homens e mulheres. Se nós, mulheres, estamos há séculos escutando que nossos corpos são sujos, errados e fontes de pecado, o desejo morre e a carne se fecha por inteiro. É como a lógica funciona. Tudo muito bem construído por um sistema que celebra apenas o falo. Mas é importante saber que o controle através do pânico moral é totalmente psicológico, sem nenhum viés biológico que o sustente e justifique.
Segundo, seriam então as mulheres que assumem gostar de se masturbar, sem precisar de artifícios que amenizam essa vontade, as novas bruxas subversivas do nosso tempo? As “depravadas”? O tempo passa e mudamos apenas alguns termos para nos sentirmos mais progressistas. Ainda gostamos de separar o erótico do pornô, como se um fosse aceitável e até encorajado na modernidade, e o outro imoral, um outro lado perigoso que jamais devemos desejar atravessar. Será que não estamos fazendo exatamente a mesma coisa quando botamos na balança o autoprazer e autocuidado (nomes tão limpos e atos tão justificáveis) versus a masturbação (uma palavra de baixo calão, que conota algo perigosamente carnal e pertencente ao universo masculino)?
Trabalhando nessa área, até hoje nunca vi um homem precisar dizer que se toca (e a frase poderia até terminar aqui) para liberar hormônios que aliviam o estresse ou que só consegue entrar no clima para se explorar se estiver com a cama perfeita, os lençóis lindamente arrumados e velas acesas. Homens se dão prazer porque é bom, pronto. Porque eles receberam essa permissão divina e jamais cogitaram se questionar ou pensar o contrário. E os porquês acabam aí.
Realmente são poucas as “unapologetics” que eu conheço nesse quesito, mas todas, sem exceção, são taxadas de mulheres com menos valor. E, pasmem, há algumas de nós que até não possuem medo de dizer que se masturbam quando estão entediadas, quando estão procrastinando, que tiveram uma vontade que veio do nada, ou que simplesmente gostam e não devem nenhuma justificativa. Poucas, mas existem. Segundo o report do PornHub, um dos sites mais visitados do mundo, ficando entre o TikTok e o WhatsApp nos acessos (quer as pessoas gostem ou não), mulheres também se interessam por estímulos visuais quando se trata de sexo. O que vai contra todo um ideal de que nós deveríamos nos restringir apenas a gostar de literatura erótica, que deve ser muito polida e soft, e romance, quando se fala de sexualidade.
O que está em questão nem é o conteúdo em si, se é bom ou não (porque meio que já sabemos a resposta) e todas suas problemáticas, mas se aquilo que teimamos em separar entre “tesão de homem” e “tesão de mulher” talvez não seja tão condizente com a verdadeira complexidade dos desejos de todo mundo. Talvez isso só ajude a reforçar os estereótipos e acabe colocando essas limitações num ciclo sem fim. Nem tudo é “meninos vestem azul e meninas vestem rosa”, como já deveríamos ter aprendido há alguns anos.
De fato, o que pode estar afastando as mulheres de descobrirem suas vontades e criarem coragem de serem mais sexuais, sem precisar se defender ou maquiar isso, é justamente a falta de narrativa do prazer feminino pelo prazer, a falta de acesso à anatomia básica e tantas outras coisas que, infelizmente, vão adiar ainda mais a chegada da tão sonhada equidade. Porque não, não adianta inventar que a culpa é de uma incapacidade feminina de pensar em sexo sem pensar em amor (seja pelo outro ou por si mesma).
No dia 31 de julho comemoramos o Dia do Orgasmo, e quero que possamos reivindicar os nossos livremente. O tesão é algo poderoso, não masculino (sempre bom lembrar que ambas palavras não são sinônimas), e pode incomodar o mundo inteiro, justamente por não carecer de explicação ou conveniência. O desejo é bicho solto e feroz, assim como nós também podemos ser.
Clariana Leal é educadora sexual e carrega como propósito a abertura honesta e inclusiva do diálogo sobre sexo, desejo e corpo. Na sua coluna Prazer sem dúvidas, ela responde mensalmente as dúvidas do público da ELLE.
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