Em livro, Adriana Negreiros discute a cultura do estupro a partir de sua dor

A vida nunca mais será a mesma traz ainda outros relatos de mulheres vítimas de violência sexual. "Alguma coisa eu tinha que fazer e o que me ocorreu foi escrever. Acho que não tinha nada que eu pudesse fazer além disso, não fiz terapia, não fiz nada", diz jornalista.


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A vida nunca mais será a mesma. A irrefutável certeza de alguém que tem que lidar com toda a dor e os traumas de sofrer uma violência sexual dá o título ao recém-lançado livro de Adriana Negreiros pela editora Objetiva. A jornalista parte do próprio relato, um estupro sofrido em 2003, e reúne também histórias de outras vítimas. A leitura ganha uma camada extra de revirar o estômago na medida em que as histórias são costuradas com uma ampla pesquisa sobre a cultura do estupro no Brasil, que evidencia o quanto as mulheres ainda correm perigo em uma sociedade machista em suas estruturas, mesmo com os avanços e os esforços dos movimentos feministas nos últimos anos.

Vêm à tona informações chocantes, como, por exemplo, a de que até 2005 o Código Penal previa que se uma mulher fosse estuprada, mas se casasse com seu agressor ou com outro homem, a pena pelo crime seria extinta. “Na cabeça de quem criou uma legislação dessa, o grande problema na vida de uma mulher estuprada era não conseguir marido depois porque ela estava ‘estragada’ aos olhos de uma certa parcela da população. Então, uma vez que conseguiu, resolveu o problema. Há 16 anos havia essa possibilidade. Claro que era algo muito excêntrico, a rigor não era utilizado a todo instante, mas chegou a ser usado para inocentar um político em Goiás que cometeu uma série de atos de violência sexual contra menores”, revela a jornalista, também autora de Maria Bonita: Sexo, violência e mulheres no cangaço (2018).

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Foto: Divulgação

Aprofundando seu olhar sobre um período que compreende dos anos 90 até 2014, Adriana mostra, além de aberrações da lei, a relação entre a violência contra a mulher e sua objetificação na TV e na imprensa, as conquistas de movimentos feministas, as políticas públicas e o Estado entre a inércia e, mais recentemente, o esforço para acabar com elas. “Achei que era importante fazer essa pesquisa porque essa não é uma questão pessoal, que diz respeito apenas à nossa individualidade.” De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) 2019, realizada pelo IBGE com o Ministério da Saúde, 8,9% das mulheres do país com 18 anos ou mais já sofreram violência sexual em algum momento das suas vidas.

Ao longo do livro, histórias reais de mulheres violentadas nas mais variadas circunstâncias – pelo marido, pelo pai, pelo avô, pelo vizinho, por desconhecidos no transporte público ou que invadem sua casa – vão ilustrando as letais consequências desse cenário trágico que vem sendo desenhado na história do país. “Só uma delas (das entrevistadas) eu conhecia, é uma pessoa do meu convívio, e eu não fazia ideia de que ela tivesse sofrido aquela violência. Ela foi violentada pelo pai no começo da adolescência. Acho que de todas as entrevistas que eu fiz, foi a que mais me machucou porque é uma pessoa em quem eu sempre notei uma certa tristeza talvez, algo que eu não conseguia compreender muito bem. Quando ela me contou, minha ficha caiu”, conta Adriana.

O relato que abre a obra é o da própria jornalista. Em 2003, aos 28 anos, ela sofreu um sequestro-relâmpago no estacionamento do shopping Eldorado, em São Paulo. Depois de obrigá-la a rodar com o carro, o criminoso a levou para um matagal e a estuprou. Das razões para ir ao shopping naquele sábado, recém-chegada a São Paulo, após anos vivendo no Nordeste, ao momento em que, passados 17 anos, sentiu-se segura para dividir com o papel a própria dor, está tudo no corajoso livro, assim como os traumas e os medos que o episódio desencadeou. “Passei a enfrentar o medo de quase tudo. É uma coisa que eu não tinha. Depois, comecei a ter medo das coisas mais simples, a gritar durante o sono. Mas lidei com isso de uma forma muito silenciosa em todos esses anos, tentando fingir que não tinha acontecido, seguir em frente. Ao mesmo tempo, era silencioso aos olhos externos porque isso estava comigo o tempo todo.”

“Lidei com isso de uma forma muito silenciosa em todos esses anos, tentando fingir que não tinha acontecido, seguir em frente”

Escrever, conta, é o que sentiu que poderia fazer. “Acho que não tinha nada que eu pudesse fazer além disso, não fiz terapia, não fiz nada. Alguma coisa eu tinha que fazer e o que me ocorreu foi escrever, porque é o que nós, jornalistas, sabemos fazer. Certamente, há quem vá se reconhecer nessa dor e nessas consequências. Só consegui fazer isso agora, em todas as circunstâncias do verbo ‘conseguir’. E meu pai morreu, eu jamais escreveria esse livro se ele estivesse vivo porque acho que seria muito difícil para ele lidar com isso.”

É também uma forma de contar a história para as filhas de 17 e 12 anos. “Quando a mais velha começou a entrar na adolescência, fiquei completamente obcecada com a ideia de que ela pudesse vir a sofrer a mesma violência, e eu nunca tinha falado nada disso para elas.”

A vida nunca mais será a mesma é mais um lançamento na esteira de outras obras recentes que discutem a violência contra a mulher, como o podcast Praia dos ossos (2020), de Branca Vianna, que relembra o assassinato da socialite Ângela Diniz pelo namorado, Doca Street, e livros como Abuso: a cultura do estupro no Brasil (2020), da jornalista Ana Paula Araújo, e Vista chinesa, de Tatiana Salem Levy (2021). Adriana celebra avanços de um lado, mas vê uma perigosa onda retrógrada de outro. “Hoje a gente tem a Lei Maria da Penha, que é uma das mais avançadas do mundo, referência em relação à violência contra a mulher. Temos uma série de outros avanços em políticas públicas para assegurar que as mulheres que foram vítimas de violência tenham direito ao aborto. Temos um movimento feminista que colocou essas discussões sobre a mesa. Mas, como é natural dos movimentos históricos, sempre que a gente avança, tem uma onda no sentido contrário. Agora a gente tem esse backlash muito intenso, nós somos contemporâneos a essa onda em sentido contrário, o que é muito doloroso.”

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A jornalista Adriana NegreirosFoto: Divulgação/Daryan Dornelles

Para que as mulheres não sejam “engolidas” por essa onda, que tenta trazer, por exemplo, a proibição do aborto em qualquer circunstância, inclusive estupro (há projetos com essa proposta tramitando na Câmara dos Deputados) educação sexual é fundamental. “Acho que a gente tem que falar cada vez mais sobre isso. É importante também que a gente sempre pense em quem vai votar para evitar colocar em posições de poder pessoas que podem tomar decisões que sejam muito perigosas para esses avanços”, diz Adriana. “E acho que é fundamental a gente combater a cultura do estupro, que está nas pequenas coisas, como por exemplo nas piadinhas sexistas. Essas coisinhas que parecem gracinhas do cotidiano vão consolidando uma estrutura que é reforçada na publicidade que objetifica as mulheres, na romantização das relações abusivas em novelas e séries. É fundamental a gente olhar para todos esses aspectos da sociedade, desde a educação até a forma como a gente consome entretenimento e ser muito firme nesse combate.”

Falar, avalia ela, ajuda a brigar com o medo. “Estava lendo um livro da escritora Audre Lorde em que ela fala sobre como o silêncio é a expressão do medo. A recomendação dela para as mulheres era ‘o silêncio não vai proteger vocês de nada. O silêncio não vai proteger vocês da dor. A dor vai continuar aí, mesmo que você se mantenha em silêncio. O silêncio não vai proteger você da morte’. Ela dizia isso a propósito de um câncer que estava enfrentando, mas se aplica muito bem a qualquer situação.”

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