Fernanda Torres fala à ELLE sobre Eunice Paiva, sua personagem em “Ainda estou aqui”
Dirigido por Walter Salles, o candidato brasileiro ao Oscar de filme internacional chega aos cinemas nacionais depois de fazer sucesso no circuito de festivais
Finalmente chegou o dia: Ainda estou aqui, um dos filmes mais aguardados do ano, chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (7.11), depois de estrear no Festival de Veneza e fazer sucesso nos festivais de Toronto, San Sebastián, Nova York, Londres e na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, onde foi o ingresso mais disputado – fato raro para uma produção nacional. O filme está cotado para indicações ao Oscar e é o candidato do Brasil à estatueta de filme internacional.
Baseado nas memórias de Marcelo Rubens Paiva, o longa mostra a história de Eunice Paiva (Fernanda Torres e Fernanda Montenegro, em fases diferentes do filme), uma dona de casa, mãe e mulher do engenheiro e ex-deputado Rubens Paiva (Selton Mello).
A casa cheia de calor humano e música é invadida certo dia, e Rubens é levado por agentes da ditadura militar. Ele nunca mais foi visto, e Eunice precisou criar sozinha seus cinco filhos, lutar por justiça pela morte do marido e se reinventar, tornando-se advogada de causas indígenas.
Fernanda Torres, que está correndo o mundo na campanha do filme para a temporada de premiações, fez uma pausa para conversar com a ELLE:
Como está lidando com toda essa maratona de festivais e pré-estreias, representando o filme em tantos lugares?
Entendi que ia ter que separar esse período para ir conforme o vento, porque não sou muito dona de mim. Graças a Deus, meus filhos já estão criados. É um negócio engraçado, um ziguezague pelo Atlântico. Mas está muito legal, porque o filme impacta muito e nas plateias mais diferentes. Ao mesmo tempo, é um filme pequeno, em português. É bem a cara do Walter, um filme analógico.
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Uma coisa que dá para perceber é que os brasileiros estão com muito orgulho do filme, mesmo quem não viu ainda. Você sente isso?
Sinto, acho que cola um pouco com a questão do Central do Brasil, de ser o Walter voltando, eu e a mamãe (que protagonizou o longa de 1998 do diretor). Tem um certo orgulho de a gente fazer um filme que se comunique com o mundo. Porque o Brasil é essa ilha de 200 milhões de pessoas, com uma riqueza cultural imensa. Odiando ou amando, a gente consome a nossa cultura. Não tenho nenhum sentimento de vira-lata com relação à nossa literatura, às nossas artes plásticas, ao nosso cinema. De vez em quando, faz algo que vai além-fronteira. Quando isso acontece, com Cidade de Deus (2002), Central do Brasil, há um orgulho da própria comunicação com outros países, de explicar quem a gente é.
Há uma enorme expectativa em relação ao filme, inclusive para o Oscar. Ela cria uma certa pressão em você?
Não, tenho adorado fazer as sessões de perguntas e respostas. E sei o tamanho do filme. Ele tem grande chance de estar entre os indicados para filme internacional. Ao mesmo tempo, sei que há outros filmes tão incríveis quanto. Na questão de atrizes, é um ano muito forte. Desenvolvi na vida uma certa maturidade. Trabalho pesadamente pelo que tiver que ser, mas não tenho controle sobre isso. É um filme sem streaming, falado em português. Estou tão orgulhosa dele que o que vier é lucro. O filme já aconteceu por si só.
“Minha maior dificuldade era ter a delicadeza dela, algo que não tenho na minha vida. Sou uma mulher muito mais bruta que a Eunice”
Como foi interpretar essa mulher que, em face de uma tragédia, acaba se reinventando?
A Eunice é muito especial. Ela é uma guia para nós todos sobre como amadurecer. Porque aquele início, aquele país sonhado, aquela casa naquela praia, com aquelas pessoas dançando, é uma coisa maravilhosa, mas uma hora aquilo é tirado dela. Esse processo de reinvenção da Eunice, de refundação dela, de sair do estado da dona de casa intelectual perfeita, mulher daquele homem maravilhoso, e virar um ser perdido no mundo, sozinha, e a maneira como encarou isso, se reinventou e virou ela, nas condições mais adversas, é uma aula de maturidade. De abandonar o estado infantil. O mundo não é como a gente espera. E a Eunice é capaz de, fora do mundo ideal, de sonho, se reinventar e ficar maior do que quem era. É uma aula para os tempos atuais.
Essa resposta é tão bonita em um dia como hoje (a entrevista foi feita um dia após a eleição estadunidense).
É exatamente isso, porque sinto que a gente tem uma representação ideal do mundo que não está se confirmando. A gente tem que abandonar esse estado quase infantil, encarar a realidade e passar a lidar com ela. Foi o que a Eunice fez.
Quanto você conhecia da história da Eunice?
Muito pouco. Sabia que o pai do Marcelo tinha sido torturado e morto na ditadura. Quando saiu o livro, corri para tentar entender. O Marcelo é mais velho do que eu, mas cresci numa casa como aquela. Eu era uma criança como ele naquele mesmo período. E o livro que ele escreveu vai muito além do que esperava encontrar. Meu primeiro contato com a Eunice foi com Feliz ano velho (também escrito por Marcelo e lançado em 1982) e especialmente nas peças de teatro baseadas no livro, em que a figura da Eunice, a mãe, era muito forte. Mas não sabia quem era Eunice Paiva. Quando fui fazer o filme, fiquei chocada com a mistura, porque ela é muito forte e ao mesmo tempo delicada. Minha maior dificuldade era ter a delicadeza dela, algo que não tenho na minha vida. Sou uma mulher muito mais bruta que a Eunice. Ficava vendo entrevistas porque ela tinha sempre um sorriso, mesmo quando estava falando as coisas mais terríveis, como não ter acesso ao corpo do marido.
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Fernanda em divulgação do fllme em Londres Foto: John Phillips/Getty Images for BFI
Além de tudo tem a contenção das emoções.
Foi uma descoberta, o que a contenção cria de vida interior em uma personagem justamente porque ela é obrigada a conter. O primeiro impulso do ator é mostrar emoção. Só que, quando você contém, a emoção se aprofunda. E isso é muito a direção do Walter, porque você vê que não está só em mim, está em todos os atores. Todos estão afinados nesse mesmo registro que chamo de honesto. Ninguém está over, das crianças ao interrogador, dos amigos ao cachorro. E isso é Walter, né? Não me lembro de um filme como Ainda estou aqui. Acho o filme mais maduro dele.
Obviamente, vocês têm uma parceria de longa data, mas essa é a volta dele depois de um tempo sem fazer longas de ficção.
Terra estrangeira (1995) foi o filme em que ele se fundou. Vi o Walter descobrir como gostava de filmar. Ele trouxe a Daniela (Thomas) porque queria trazer a experiência de teatro, que é grupal, de autoria de todos. No Terra estrangeira, todo o mundo era o autor do filme. E depois eu o vi levar isso para Central do Brasil, para Diários de uma motocicleta (2004). Ainda estou aqui era o retorno dele para o Brasil numa história da qual é parte. Ele é um daqueles moleques que estão dançando na festa (há várias cenas do longa com amigos dos filhos do casal Paiva, na residência da família). Ele viveu aquela casa. Queria muito que fosse uma experiência da qual o Walter se orgulhasse, sabe? Que esse retorno dele para o Brasil fosse algo especial para ele.
“Acho o filme mais maduro do Walter”
E aí junta a sua mãe, que também já tinha trabalhado com o Walter.
É isso, e eu e a mamãe somos uma família de circo. A Daniela também. Toda a equipe. Eles são a minha família de arte, e é uma galera muito boa que o Brasil produziu. E o Walter regeu.
Você nasceu em um pouco depois do golpe. O que ficou daquela época que talvez tenha passado para o filme?
Eu era muito nova. É menos em relação à ditadura e mais àquela casa. Ela tinha o cheiro, o tamanho da minha casa. Então, tinha uma coisa muito afetiva de pegar meu carro e ir para Urca (local da filmagem) e entrar numa viagem no tempo. A Eunice lembra minha mãe. Elas são parecidas. Mais do que a ditadura militar, era mais o Rio de Janeiro, a memória que tenho. Porque a cidade foi ladeira abaixo. E é a minha referência de cidade, de tudo. Falar do Rio em outros termos (além da violência e outros temas frequentes sobre a capital) me toca muito. E ao mesmo tempo o que está acontecendo na cidade, todo o processo de violência do Rio, é um pouco o que está acontecendo no Brasil. Tanto que a gente está achando que talvez um regime autoritário dê um basta nessa loucura.
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Você tem um público jovem que te ama.
Sobrevivi graças aos memes. Tenho um orgulho imenso porque acho meme uma comunicação superior. Figurinha, então! Cada vez que viro figurinha, tenho um orgulho imenso. São muito bem-vindos. Amo os meus memes.
Vai ser curioso esse público mais jovem que talvez te conheça mais da comédia te ver de outra forma.
Tem uma história maravilhosa: eu estava sendo cogitada para uma novela. Uma menina ficou indignada e postou: “Quem é essa mulher? Fui ver e ela não tem nem não sei quantos mil seguidores. Quem tinha que ter feito isso era…”. Aí ela citava uma blogueira que tinha 1 bilhão de seguidores (risos). Sensacional. A própria internet começou a dizer: “Não, fulana. Ela é essa mulher aqui”. Ela pediu desculpa, disse: “Ô, gente, desculpa, não tinha a menor ideia”. Porque ela não sabia quem era eu. E disse: “Eu estou agora seguindo aqui, estou achando até engraçada”. Maravilhosa, entendeu? Adoraria que essa menina fosse ao cinema. Ela ia gostar, se conseguir desligar o celular por duas horas…
“Sobrevivi graças aos memes. Tenho um orgulho imenso porque acho meme uma comunicação superior. Figurinha, então! Cada vez que viro figurinha, tenho um orgulho imenso. São muito bem-vindos. Amo os meus memes”
Nessa temporada maluca que você está tendo, as roupas são importantes. É divertido?
É uma profissão à parte. Na verdade, agora estou trabalhando nisso: em lançar (o filme), fazer boas sessões de perguntas e respostas. Mas você tem que estar apresentável. Não pode errar. Antônio Frajado (stylist), meu fiel escudeiro, tem me ajudado. A Bottega Veneta foi maravilhosa comigo. Vuitton, Dior, Reinaldo Lourenço, Alexandre Herchcovitch. É igual a figurino de teatro, você tem que acertar, senão acaba com o personagem.
Sente-se pressionada?
É um trabalho mesmo. Você não pode ir vestida com uma coisa que não é. E a gente não pode trair a Eunice. A maneira com me apresento num tapete vermelho tem a ver com o Walter, com a Eunice Paiva, com o filme. Você não pode ir vestida de Cinderela indo mostrar esse filme, entendeu?
Nem no Oscar?
Eu acho que o filme tem muita chance de estar entre as indicações. Mas é assim: qual é a versão Eunice Paiva para esse momento? Tem que ser coerente.
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