Patti Smith: “Não se preocupe, vai dar certo, vamos dar um jeito”

A compositora e escritora, que volta ao Brasil, falou com a ELLE sobre sonhos, religião e o papel do artista.


Patti Smith
Foto: Bob Wolfenson



Patti Smith volta ao Brasil para apresentações nesta quarta (29.01) e quinta-feira (30.01), no Teatro Cultura Artística, em São Paulo, com ingressos esgotados. A cantora, compositora e escritora estadunidense se apresenta ao lado do Soundwalk Collective no projeto Correspondences, “em que os artistas percorrem o mundo e atravessam paisagens para explorar caminhos sonoros deixados por poetas, cineastas e revolucionários”. O parceria tem como desdobramento a exposição A Amazonia, em cartaz a partir do sábado (01.02) na Mendes Wood DM, também em São Paulo. Confira a seguir a entrevista com Patti publicada na ELLE Volume 02, em dezembro de 2020.

“Não se preocupe, vai dar certo, vamos dar um jeito.”

Talvez eu tenha passado o ano todo esperando por esse telefonema. Sem saber, porque a surpresa é recente. Quando a notícia chegou, fiquei tão feliz que quis fugir. O que diz muito sobre mim. Foi dando tudo errado. Minha conexão ruim. Meu nervosismo de chegar atrasada a um encontro desses. Ela me chamava, mas não podia ouvir minha resposta. Chega uma mensagem: landline, número. Em bom português, chama no fixo.

“This is Patti.” É isso, Patti Smith. Poeta, escritora, musa, artista de talentos extraordinários. É 2020, e estou cansada de fingir normalidade. Fico nervosa, tanta coisa pra dizer. Anos e anos, livros e discos, o dia em que eu acabei de ler Só garotos e senti uma inspiração indescritível, meu amigo cantando as músicas dela. Há muitos anos acho difícil fazer entrevistas e, se fico nervosa, é difícil pensar em outro idioma. Tudo atrasado, já era pra termos terminado a entrevista, fico atrapalhando e atrapalhada. Ela percebe e tenta organizar minha fala meio desconexa. Eu digo: “Patti, vou ser mais direta, sei que estamos sem tempo”.

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Foto: Bob Wolfenson

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“Não se preocupe, vai dar certo, vamos dar um jeito.”

Essa frase sempre me comove de alguma maneira, porque talvez tenha ouvido de pessoas sinceras em momentos importantes. Demos um jeito. Atrasei a dieta da gata Cairo, que acabou almoçando com a gente. A coisa foi rolando meio torta, mas bonita. Patti Smith fala como vive um rio, vai dando uma onda. Ela vem, só tive que não me afogar no processo de ouvir. Fui propondo umas margens mínimas, propondo temas que ela foi pensando conforme falava sobre sonhos, morte, arte, memórias e anos difíceis.

Eu tinha muitas anotações, fiquei me preparando. Notas feitas nos dias anteriores, mas também em cadernos e notepads, coisas de mais de uma década, outras que pensei depois de ver o show de 2019 no Memorial da América Latina. Trechos de livros que eu poderia agora recitar de cabeça. Na hora mal consegui ler uma frase. Não é todo dia que a gente vive um sonho acordada, e o sonho não era fazer uma entrevista, mas trocar algumas ideias e essa presença tão forte que é a voz. Ouvi-la e transmitir pra você que tá lendo agora e talvez pensando, poxa, eu precisava mesmo ler isso. Acontece.

Lidar com memórias amorosas pode ser complicado. Patti manja disso, ela já transformou muitas em coisas de uma beleza extraordinária. “Sei que foi difícil pra você. Se precisar de algum complemento pro seu artigo, me escreva”, ela disse, talvez se referindo a todo o enrosco tecnológico, talvez
à minha gagueira súbita e momentânea. Acertou em um monte de outros lugares. A gente não precisa saber de tudo pra acertar. Na noite em que eu falei com Patti Smith, meu sono ficou povoado de sonhos intensos. As palavras dela vêm carregadas de abertura, e você pode trabalhar com elas depois.
Vou tentar traduzi-las aqui da melhor maneira, como uma carta de amor a cada pessoa que tiver a chance de ler.

Acho que foi mais ou menos assim:

Fred Sonic Smith e Patti Smith

Fred Sonic Smith e Patti Smith Foto: Robin Platzer/Getty Images

O que é ser artista hoje?

Um artista precisa de liberdade. Quero ser livre no meu trabalho, mas também quero colocar meus esforços em questões humanitárias. Não porque desejo que meu trabalho seja superpolítico, mas porque, como performer, posso falar com muita gente. Seja em um estádio, seja na rua. Tenho tentado ser uma boa cidadã, fiz campanha para incentivar as pessoas a votar, especialmente em um cenário eleitoral tão sombrio. (Às vésperas da eleição que levou à derrota de Donald Trump nos EUA, Patti foi para as ruas de Nova York cantar algumas de suas canções, entre elas, “People have the power”. Ela se posicionou abertamente contra a tirania do ex-presidente.) Às vezes precisamos levantar nossas vozes. Mas também preciso da minha solidão. É necessário para o meu trabalho. Se você é um artista, o trabalho muitas vezes é aquilo que você sente que foi feito para realizar. Eu mesma sou muito centrada no meu trabalho, em viver como artista. Mas também sou mãe, dou atenção às necessidades dos meus filhos, à minha família. Eu dou o que posso ao mundo, mas tenho sempre que voltar e fazer meu trabalho. É para isso que eu nasci.

Qual o papel dos sonhos na vida? Como a gente pode pensar uma conexão do tipo sonho e arte?

Existe uma segunda vida. Os sonhos duplicam nossa existência e há muitos tipos de sonhos.
Há os sonhos sobre os quais não temos controle. Eles vêm durante o sono e às vezes são dotados
de uma qualidade surreal que pode ser muito útil para inspirar a escrita. Podem destacar certos
elementos. Mas nesses sonhos eu também sou visitada por pessoas. Minha mãe, meu marido
(o músico Fred Sonic Smith, com quem Patti teve dois filhos, Jesse e Jackson. Ele morreu em 1994.
Ela diz que foi amor à primeira vista. Amor que aparece toda vez que ela fala dele). Sonhei que
estava conversando uma noite inteira com Sam Shepard (escritor, ator e autor de peças e roteiros, grande amigo dela, que morreu em 2017), falamos a noite toda. Inesperadamente, isso acontece
com os mortos, eles me visitam. Mas existe também o campo da imaginação, que torna mais vivos os sonhos do dia, os que sonhamos acordados. Muitas vezes são eles que nos ajudam a enfrentar o dia. E há os sonhos visionários, os sonhos de um arquiteto, de um cientista. Sonhos derretidos
e misturados, como o sonho de criar uma vacina, algo que se mistura com a realidade. Uma vacina, uma grande construção, um jardim, algo que se materializa. Uma equação de sonho e ação, isso pode virar um trabalho. Eu bebo das fontes de todos os tipos de sonho.

“Eu dou o que posso ao mundo, mas tenho sempre que voltar e fazer meu trabalho. É para isso que eu nasci”

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Por que a gente fala tão pouco da morte, já que ela atravessa tudo?

Não sei. É difícil dizer. Penso que funciona mais ou menos como uma frequência de rádio. Alguém deseja falar comigo. E se eu quiser, estou aqui, posso simplesmente falar com a minha mãe. Aliás, falei com ela recentemente. Não posso falar por outras pessoas, mas acredito que é muito saudável falar das pessoas que perdemos, lembrar delas e contar suas histórias. Isso pode ser parte da nossa existência, da rotina. Quer dizer, isso não significa ficar falando delas o tempo todo, mas não esconder, não fechar a boca e guardar tudo. Acho que você sabe disso.

Sim… (Pensei na morte do meu pai, na psicanálise me ajudando a não fechar a boca.)

É importante lembrar. Pode ser uma vela na igreja, mas também pode ser uma conversa aberta com seus mortos. Você pode encontrar uma maneira própria de fazer isso. As pessoas, às vezes, me perguntam como eu faço. E eu digo: “Se você perdeu seu filho e realmente acredita que pode falar com ele, ele estará sempre com você”. Isso não muda o que aconteceu, mas traz certo calor, um pouco de conforto e alegria. É importante não pensar nos mortos somente com raiva e tristeza. É bom pensar na felicidade que nos trouxeram, lembrar de bons momentos. A energia da tristeza pode conviver com um pouco de alegria. Podemos mandar isso aos nossos mortos.


Essa criatividade pra lidar com as coisas importantes, você acha que todo mundo pode fazer isso? Às vezes, parece que nesse mundo querem colocar cada vez mais regras pra esse tipo de coisa, as pessoas se sentem obrigadas a repetir padrões, porque dizem que sempre foi assim ou tem que ser… 

Temos a liberdade de pensar. Não importa a situação, alguma liberdade de pensamento nós temos. Não sou muito fã de regras. É por isso que não tenho uma religião. Eu poderia dizer que sou cristã. Eu leio a Bíblia e admiro tantos aspectos da arte cristã. Mas também estudo outras fés. Não quero ficar confinada a um monte de leis e regulamentos. É evidente que todos nós temos leis e algumas regras para seguir, que de fato precisam ser seguidas. Mas eu posso, eu me permito, sim, encontrar minha própria maneira de fazer uma prece. Eu faço meu caminho para decidir como deve ser a vida após a morte. Eu crio minha forma de falar com os mortos. Isso requer imaginação, mas além disso requer liberdade. Se você pensa no tempo de Cristo, as coisas eram simples em termos de regras. Ele não exigia todas essas coisas ditas pela Igreja, não tinha todo esse regulamento. Você sabe que muita coisa que está na Bíblia, muitas regras que estão lá foram criadas por homens. O ensinamento básico de Cristo foi que a gente amasse uns aos outros, e se esse tipo de amor realmente estiver presente certo tipo de coisa perde a importância. As pessoas colocam um monte de restrições desnecessárias quando pensam. Na minha casa, a única regra era ser uma boa pessoa. Meus pais nos ensinaram uma vida sem preconceitos. Não estavam interessados em qual era seu lance sexual, seu gênero, não separavam por raça, não ficavam perguntando a religião, nada disso, inclusive com quem nos visitava. Eles perguntavam: “É uma boa pessoa?” Eles se importavam com boas ações, atitudes boas, cuidado. Eu cresci nesse tipo de ambiente, e o princípio básico estabelecido era esse. Em vez de se fechar, acho que o melhor seria uma abertura. Aprender a ouvir, tentar construir formas de comunicação.

“Há muito tipos de sonhos. Há os sonhos sobre os quais não temos controle. Os sonhos que sonhamos acordados. Os sonhos visionários. Eu bebo das fontes de todos os tipos de sonhos”

Seus livros, suas músicas, tudo o que você faz está cheio dessas boas palavras, dessa atitude. Seus livros, pra mim, são cartas de amor à própria vida. Faz sentido ou eu tô viajando? (Essa era minha declaração central, é como de fato eu me sinto sobre a obra da Patti. Tenho muita gratidão pelo trabalho que ela produz há tantos anos e fiquei nervosa de contar assim pra ela.)

Obrigada! Eu escrevo como cartas às pessoas. Eu escrevo livros para as pessoas, quero que elas flutuem neles. Desejo que elas tenham, quem sabe, experiências transformadoras. É como em um show: cantar as músicas e criar certa luz. Eu sempre espero que durante a experiência do show as pessoas passem por algum processo, que talvez elas possam sentir certa energia. Tudo o que eu faço tem uma linha aberta. Então, acho que podemos falar de carta de amor, chegando a esse ponto de uma carta de amor à vida. É, eu amo estar viva. Eu fui uma criança muito doente, minha mãe quase me perdeu por três vezes. E ela lutou muito para me manter viva. Sou muito feliz por estar viva, por ter a chance de ver minhas crianças crescerem, observar o que as outras pessoas estão fazendo, novos livros, novos filmes, novas ideias, música. Então cada dia pode ser uma carta de amor à vida. Obrigada. Sim, eu tenho um novo dia, um novo dia para aprender, para criar uma nova experiência, inclusive se o dia for ruim. Existe um certo tipo de mágica em qualquer dia. (Barulho de gato) Você ouviu? Vou dar comida para ela.

Como é o nome dela?

Cairo. Ela tem a cor da pirâmide. Essa gata é uma atriz. Ela já tem quase 20 anos, mas as pessoas continuam achando que é um filhote grande. She’s my beautiful. (Não vou traduzir isso porque é muito pessoal.) E tem sido minha principal amiga durante toda a pandemia, estou bastante isolada. (Elas estão no apartamento da Patti em Nova York.)

(A ligação cai quando eu digo que tenho mais uma pergunta. Tento três, quatro vezes. O telefone toca.)

“Isso pode parecer algo que a sua mãe ou sua vó diriam, mas é hora de ficar saudável. De ganhar força para fazer coisas maiores, lutar por igualdade”

Patti, obrigada por ligar, não esperava essa. Muito obrigada de verdade. Prometo que só tenho mais uma ou duas perguntas.

De nada. Você disse antes que tinha mais perguntas, não quis deixar de responder.

(Falamos sobre São Paulo e os shows de 2019. Ela conta de prédios, de andar pelo centro e de como sua filha Jesse Paris, que é música e ativista ambiental, descobriu que São Paulo é o seu segundo maior público no Instagram. Patti gostou dos shows, diz que se sentiu bem e acolhida, ficou com vontade de vir de novo.)

A última. Não sei, foi um ano tão difícil, tão estranho. O que você diria para as pessoas a essa altura, parece que começamos a fazer um balanço e tudo pesa…

Sabe os filmes do Bruce Lee (fico imaginando a cara dele com ar de mistério), quando tá tudo cercado e ele senta no chão para pensar? Estamos cercados. Uma pandemia, uma catástrofe ambiental, desonestidade. Tem tanta coisa acontecendo que podemos ficar um pouco desorientados como seres humanos. E às vezes é melhor sentar, é melhor retornar a coisas mais básicas. Acordar todos os dias e tentar ao menos criar algum tipo de disciplina, coisas bem simples. Eu sou quase militante em relação a isso. Não sei, pode parecer bobo demais e até engraçado dizer coisas desse tipo. Mas eu sei que me ajuda acordar todos os dias e tomar muita água. Fazer um exercício leve. Poder respirar, um tempo para respirar fundo. Eu respiro fundo. Vou procurar alguma coisa para fazer perto de mim. Não sei, pendurar as minhas roupas, limpar o chão, dar uma arrumada geral na casa. Naquele momento eu penso, bom, não vou poder derrubar o ditador hoje, agora. Mas posso ver se alguém precisa de comida. Posso escrever. Posso pensar no que fazer para mudar o futuro. Tem sempre um pequeno esforço que pode ser feito. Um dia eu posso ajudar alguém mais velho. Outro dia posso ajudar uma criança. Num dia eu lavo a roupa. Em um outro dia, escrevo um poema. Precisamos ajudar quem não tem as mesmas oportunidades. Num tempo como esse, é muito fácil ficar deprimido. Isso pode parecer algo que a sua mãe ou sua vó diriam, mas é hora de ficar saudável. De ganhar força para fazer coisas maiores, lutar por igualdade. Na pandemia, há atos de cuidado muito simples, como usar máscara. É importante que a gente se ajude a ficar vivo.

(Nos despedimos. Ela é muito gentil, quero agradecer até ficar chato. Mando um abraço em português.)

Até logo, Patti.
Se cuida.

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