Festival online exibe premiados  documentários de moda

Entre produções sobre Alexander McQueen e Martin Margiela, Feed Dog Brasil apresenta o elogiado Favela é moda. Conversamos com o diretor Emílio Domingos sobre representatividade e negritude.


gecuLGPB origin 736



De Martin Margiela a um grupo de alfaiates mineiros, passando pelos dândis de Angola, uma boa programação de documentários de moda embala a quarentena até o próximo domingo (20.12). Até lá, o festival Feed Dog Brasil exibe de forma online e gratuita títulos premiados como O Império de Pierre Cardin, de P. David Abersole e Todd Hughes; Martin Margiela: In His Own Words, de Reiner Holzemer; McQueen, de Ian Bônhote e Peter Ettedgui; Halston, de Frédéric Tchenge; e Bangaologia – The Science of Style, de Coréon Dú.

Entre as produções nacionais está Favela é moda, de Emílio Domingos, eleito melhor documentário pelo público no Festival do Rio 2019 e melhor longa no XII Prêmio Pierre Verger de Filme Etnográfico 2020. O documentário conta a história de uma agência periférica que reúne modelos de várias comunidades do Rio de Janeiro, a Jacaré Moda (assunto para a ELLE ainda em 2018), criada por Julio César da Silva Lima, um self made man, como define Emílio. “Quando o Julio começou a Jacaré, ele era porteiro em um edifício de Copacabana. Ele passou a folhear as revistas de moda que encontrou no lixo do prédio. Como só tinham garotas brancas e nórdicas, ficou pensando: ‘As meninas da minha comunidade poderiam estar aqui'”, lembra Emílio, antropólogo por formação e documentarista por vocação.

O diretor Em\u00edlio Domingos sentado numa cadeira
O diretor Emílio DomingosFoto: Divulgação/Delphine Lawson

Mais do que moda, o documentário debate autoestima, negritude, identidade e representatividade por meio das entrevistas com os modelos da agência. “A Jacaré Moda é um espaço de formação do indivíduo, em que eles discutem a sociedade e sua própria vivência”, diz Emílio sobre a agência que viria a se dividir depois entre a JCRÉ Facilitador, que oferece cursos ligados ao universo da beleza, e a Silva Produtora, agência de modelos, produtora de moda e comunicação.

Antes de Favela é moda, Emílio dirigiu A Batalha do passinho (2013), sobre a cultura do passinho no Rio, e Deixa na régua (2016), sobre o universo das barbearias da zona norte carioca, também em exibição no festival (confira aqui a programação completa) — Favela completa a chamada trilogia do corpo do diretor. A seguir, nosso papo com Emílio, que se prepara para mergulhar no movimento da soul music carioca da década de 70, em seu próximo filme:

A modelo Camila Reis olha para a c\u00e2mera
A modelo Camila Reis, entrevistada de Favela é modaFoto: Divulgação

Como você foi atraído por esta história, depois de retratar o passinho e as barbearias do Rio de Janeiro?

Um filme me levou a outro. O Favela é moda é um pouco o resultado dos outros dois (documentários). Eu estava exibindo A batalha do passinho em uma ONG e uma espectadora chegou e falou com uma cara séria: “Emílio, seu próximo filme tem que ser sobre a Jacaré Moda”. Parecia uma profecia. Eu já conhecia a Jacaré, havia assistido a um desfile na Favela de Manguinhos (Rio de Janeiro). Ela deu o telefone de uma das sócias, a Clariza Rosa, e fui falar com ela quatro dias depois, numa terça. A Clariza avisou que na quinta teria uma reunião-geral. Fui, conheci o Julio, sócio-fundador. Ele foi super simpático, tinha visto meus filmes anteriores e já foi avisando: “Olha, no domingo vai ter um casting na quadra da Unidos do Jacarezinho, você já pode ir, leva sua câmera” (risos).

Não te deram outra opção (risos)…

(Risos) Foi tudo muito natural. Cheguei na quadra e foi catártico, umas 200 pessoas, as candidatas super nervosas, as mães gritando, o Julio mostrando como desfilar, dando entrevista para a rádio comunitária. Aí, eu já estava neste filme.

Apesar de ter sido tão natural, o que te fez contar essa história?

Acho que através da moda a gente pode discutir muitas questões referentes ao país, à nossa identidade. A questão da representatividade da população negra permeia a moda. Quando o Julio começou a Jacaré, ele era porteiro em um edifício de Copacabana. Ele passou a folhear a revistas de moda que encontrou no lixo. Como só tinham meninas brancas, nórdicas, ficou pensando: “As meninas da minha comunidade poderiam estar aqui. Por que não estão?”. Aí, ele resolveu criar um concurso de beleza, foi pesquisando, estudando e virou uma pessoa envolvida com a moda de maneira autodidata. E assim, há 19 anos, se não me engano, surgiu a Jacaré Moda.

Garoto olha para a c\u00e2mera enquanto barbeiro apara sua sobrancelha
Cena do documentário Deixa na réguaFoto: Divulgação/Deixa na régua

Toda essa representatividade te chamou atenção.

Sim, a moda dita padrões, de certa maneira, faz com que estabeleçamos o que é belo. A imagem que a moda cria, o que a gente vê nas revistas, nos comerciais têm uma força muito grande. Li uma matéria, acho que era de 2009, do jornal O Globo: dos 344 modelos do SPFW só 9 eram negros e pardos. Depois dos protestos, o Ministério Público entrou com uma ação solicitando que 10% dos modelos fossem negros ou pardos, o que ainda é um número ínfimo em relação à realidade brasileira. Acho que as coisas têm mudado de um tempo para cá. Li uma manchete dia desses que o SPFW ia instituir um percentual de modelos negros e pardos (este ano, o evento, em parceria com o coletivo Pretos na moda, determinou que 50% dos modelos do SPFW fossem negros, afrodescendentes e indígenas). Iniciativas como a Jacaré tem conseguido com essas conquistas, que não é exatamente uma conquista, mas um reconhecimento básico das pessoas se verem representadas… Acabei fazendo uma dissertação de mestrado sobre a Jacaré Moda.

Sobre o que é seu mestrado exatamente?

É uma dissertação que defendi no ano passado na Universidade Federal Fluminense, no Programa de Pós-Graduação de Cultura e Territorialidades (PPCULT). Sou antropólogo por formação. Fiz um etnografia, uma descrição densa do que é Jacaré Moda, um estudo antropológico desse período de quatro anos que estive com eles. A dissertação tem uma diferença com relação ao documentário: após o processo de filmagem, a partir de questões que observei que os modelos debatiam em grupo, fiz umas 13 entrevistas de duas a três horas com eles, individualmente, para conseguir maior profundidade nas respostas. E acho que extrai muita coisa interessante disso. Os modelos da Jacaré são muito articulados. Além de moda, eles falam sobre questões como racismo, territorialidade, mobilidade, gênero e homofobia. A Jacaré Moda é um espaço de formação do indivíduo, em que eles discutem a sociedade e sua própria vivência.

E o que te impressionou nessas entrevistas?

Que a Jacaré Moda é um espaço com um espírito coletivo muito forte, em que as pessoas assumem suas diferenças, um espaço muito democrático, em que os modelos se sentem acolhidos.

Depois do passinho, das barbearias cariocas e da Jacaré, qual será seu próximo filme?

Vou voltar no tempo. Será um filme que considero muito importante para a memória cultural do Rio de Janeiro, sobre o movimento Black Rio, da soul music dos anos 70, sobre a origem dos baile funk carioca, do movimento black power, pré-Furacão 2000. Vou falar da época de Gerson King Combo, Carlos Dafé, da banda Black Rio e do movimento Black Power.

Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes