Em entrevista, Jeanne Gang fala sobre Lina Bo Bardi e projeto em Brasília
Arquiteta que dominou a vocação vertiginosa de Chicago com torres gigantescas, Jeanne Gang também é festejada por seus trabalhos em que o foco está na preocupação com o social, na inclusão e no respeito à ciência, à educação e ao meio ambiente.
Ela é a arquiteta do mais alto arranha-céu de uma cidade conhecida pelos arranha-céus: Chicago. O impressionante edifício Aqua Tower, desenhado por Jeanne Gang em 2019, tem 82 andares e 262 m de altura – o mais alto do mundo já projetado por uma mulher. Mas o que chama mais a atenção não é a monumentalidade da torre, e sim sua beleza, as sacadas, que formam ondas e criam formas diferentes dependendo do ângulo em que são vistas. “É como se Gaudí tivesse resolvido criar edifícios. Ou uma bailarina rodopiando que se transmutasse num prédio”, descreveu o jornal britânico The Guardian.
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Jeanne Gang não é, entretanto, uma mulher de obra única: projetou espaços culturais, como o Writers Theatre e o Arkansas Museum of Fine Arts, e espaços ambientais, como o Nature Boardwalk, e, em Nova York, a grandiosa expansão do American Museum of Natural History, batizada de Richard Gilder Center for Science, Education and Innovation. O complexo tem 20 mil m2 de área construída e integra coleções, espécies científicas, biotério e salas educativas, de investigação e pesquisas, além de livrarias e galerias.
A fachada recortada de concreto do 11 Hyot, em Nova York, privilegia a luz do sol e a vista do Brooklyn. Foto: Divulgação
Artista refinada, de ideias originais e mente aberta, Jeanne propõe em seu trabalho (para o qual se alia a outros artistas de destaque, como Roberta Feldman, Theaster Gates, Kate Orff, Greg Lindsay e Rafi Segal) soluções para problemas difíceis, como acessibilidade, revitalização de áreas industriais, tecnologia, biodiversidade, igualdade social e o jeito e a qualidade do viver nas cidades.
O Studio Gang Architects, seu escritório, mantém sedes em Chicago, Nova York, São Francisco e Paris. Por aqui, ele trabalha atualmente no projeto da nova Embaixada dos Estados Unidos em Brasília, no qual imprime referências a Oscar Niemeyer e Roberto Burle Marx.
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Jeanne Gang, arquiteta do edifício mais alto de Chicago. Foto: Saverio Truglia
Formada pelas universidades de Illinois e Harvard, a estadunidense trabalhou também com um ícone da arquitetura mundial, o holandês Rem Koolhaas. Em 2022, ela ganhou o prestigiado Prêmio Charlotte Perriand, outorgado pelo Créateurs Design Awards da França.
Em entrevista exclusiva à ELLE Decoration Brasil, Jeanne se declarou fã da arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi e do Sesc Pompeia, em São Paulo, e falou do modernismo brasileiro de Niemeyer e Burle Marx.
Qual o papel de um arquiteto na atual situação mundial, em que temos mudanças climáticas, a emergência de novos vírus e doenças, crises de energia, a guerra na Ucrânia. Você vê a responsabilidade do papel do arquiteto nisso?
Todo mundo tem de ser parte da solução, mas os arquitetos desempenham um papel fundamental, ajudando as pessoas a enxergar o que é necessário para fazer uma transição ao futuro: dos combustíveis que usamos ao jeito que construímos a conectividade social. A arquitetura é um campo interessante para a conectividade, para o privado e o público, para todo mundo que usa a cidade. Nós projetamos coisas que as pessoas usam como abrigo. Então é importante, e eu sinto, sim, a responsabilidade. Mas também amo o processo, o engajamento durante o desenho, o projeto e o que faz as pessoas a se aglutinar em torno de ideias e do futuro e nos tempos mais difíceis.
Madeira e fibra de vidro dão forma ao pavilhão do Nature Boardwalk, no Lincoln Park Zoo, em Chicago: abrigo para aulas e eventos ao ar livre. Foto: Divulgação
Isso nos leva a seu projeto de expansão do American Museum of Natural History, em Nova York, porque ali é um espaço para a ciência, destinado a estabelecer conexões. Foi um desafio adicional como arquiteta?
Sim. Realmente pensei sobre o jeito pelo qual nós aceitamos a ciência e as maneiras pelas quais não a aceitamos. Há um movimento anticiência e acho que a ausência de boa educação científica nas escolas é clara. Os museus podem representar um papel importante no preenchimento dessa lacuna. Uma educação científica não somente para as crianças, mas também para os pais e seus professores. Os jovens adultos representam um papel crucial no entendimento da ciência. Esse é um momento-chave para isso, para se engajar com a ciência e a natureza, com a Terra. Então, pensei em como deixar as pessoas entusiasmadas com a questão do conhecimento, das descobertas. Tentei desenhar algo nesse sentido. Pensei em paisagens naturais e em como me sinto quando estou fazendo caminhadas. Terminei trabalhando em ideias sobre o fluxo e no que acontece com a água, o vento e o tempo em ação nas paisagens naturais. Isso me deu abertura para experimentar. Quando as pessoas o visitarem, tenho a esperança de que caiam de amores pela ciência e pela natureza e queiram conhecer mais.
Um de seus colaboradores, o artista plástico Theaster Gates, é um profissional preocupado com a questão da comunidade, das raízes culturais. Quão próxima você se sente dessas questões?
Theaster vê a construção de uma comunidade forte não somente como uma satisfação de necessidades. Temos isso em comum. Em cidades como Memphis, Brownsville e Nova York, em que há bairros em conflito, também existem pontos positivos. Você tem que achá-los e conectá-los. É o que Theaster faz: ele encontra as pessoas que têm interesses em comum, as oportunidades em algum edifício ou local abandonado, e promove um programa para membros da comunidade. Esses espaços se tornam âncoras comunitárias, e é o que o Studio Gang faz. Penso nisso como em pétalas. Você tem uma flor e faltam as pétalas. Você tem que encontrar essas partes perdidas e preencher a flor novamente.
Como você analisa a experiência da arquitetura de Lina Bo Bardi no Brasil?
O Sesc Pompeia é o meu projeto favorito. À fábrica de tambores que havia no lugar foi adicionado outro elemento. Há algo novo que preenche o espaço, como o edifício recreacional, que aproxima todo mundo. Amo a forma como pessoas muito diferentes vão até lá e se conectam com o ambiente. Isso é fabuloso. Sempre recomendo a visita. A observação do comportamento das pessoas é algo obrigatório no trabalho de Lina. Não é apenas um monumento.
O calçadão de madeira do Nature Boardwalk circunscreve toda a lagoa, passando por zonas educativas, que dão informações sobre diferentes animais e plantas do local. Foto: Divulgação
E Brasília, onde o Studio Gang está desenvolvendo um projeto? Qual é seu sentimento sobre a cidade?
Gosto muito de Brasília. A cidade evoluiu. Encontro gente que vive lá e essas pessoas tiveram que se adaptar à arquitetura, e não o contrário. Hoje, elas vivem nas quadras residenciais e encontraram uma maneira de tornar a vida agradável. Penso que é uma cidade que traz benefícios nesse nosso tempo, porque começa a misturar mais e mais as coisas e torna possível, por exemplo, andar de bicicleta ao redor dela, em vez de privilegiar o uso de carros. É um lugar incrível pela arquitetura, claro, mas que agora começa a se desenvolver como um ambiente urbano interessante.
No projeto da nova Embaixada dos Estados Unidos em Brasília, você buscou fazer algo que tenha harmonia com as ideias de Niemeyer e de Lúcio Costa, como o uso das curvas?
É preciso olhar o contexto. A cidade foi construída principalmente na grande área central. Esse núcleo é consistente. Tentei me conectar com isso. A curvatura é muito natural em Brasília, mas achamos que é também uma solução prática. Nós tínhamos um terreno pequeno para construir. Então, as curvas ajudaram a aproveitar a área, potencializando a bela luz. Tentei manter algum diálogo com o que já existe em Brasília. O terreno tinha um jardim desenhado por Burle Marx. Embora fosse mais simples suprimi-lo, nós resolvemos restaurá-lo. É chique que Burle Marx tenha desenhado a paisagem do nosso espaço. Sou fascinada pela paisagem natural de Brasília, pelo cerrado e sua biodiversidade. A cidade não é importante somente pelos prédios icônicos, mas pela paisagem tropical que aqueles modernistas abraçaram. Nós trouxemos o cerrado para a embaixada, pois construir compreendendo a paisagem é muito importante. E isso em parceria com paisagistas locais.
No novo escritório do Studio Gang, em uma construção art déco de 1938, em Chicago, o roof top ganhou um espaço verde. Foto: Divulgação
Seus edifícios em Chicago têm uma preocupação externa, estética, com certa dose de minimalismo. É como se você propusesse a beleza no mínimo.
Eu não começo com a estética, mas com o desenho. É um processo de tentar entender o contexto em que as pessoas querem viver. Como é o clima, quais são as oportunidades, que tipo de material pode ser usado. Pode ser madeira, concreto ou aço, mas a pergunta é: qual material é capaz de dar conta aqui? Não é uma ideia decorativa essa composição de diferentes tipos de fachadas. São os ossos do edifício que você vê como estética.
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Você já projetou tanto arranha-céus quanto teatros e parques. Tem algo que ainda ambiciona criar?
Gosto dos edifícios que se abrem para o público, como o Sesc Pompeia. Lugares que capturam as experiências individuais das pessoas, espaços públicos, construções para abrigar arte e música. Eu quero me manter trabalhando sempre para as comunidades porque, quando você realmente vê o impacto da arquitetura na vida de alguém, há um efeito que se espalha, e eu amo ver isso acontecer.
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- Esta reportagem foi publicada originalmente na edição impressa do volume 2 da ELLE Decoration.
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