No último MTV Video Music Awards, realizado este mês, nos Estados Unidos, a estadunidense Chappel Roan recebeu o prêmio de artista revelação de 2024. E, em seu discurso de agradecimento, dedicou o feito a todas as drag queens que a inspiram. Na mesma noite, antes de performar o hit “Good luck, babe”, Sasha Colby foi quem subiu ao palco para anunciar a nova estrela do pop. Colby se intitula “a drag queen favorita da sua drag queen favorita” e é a primeira mulher transsexual a vencer o RuPaul’s Drag Race, na 15ª edição do programa.
Sasha Colby.
Foto: Getty Images
Chappel Roan nasceu na pequena cidade de Willard, no Missouri, EUA. Ela mudou para Los Angeles em 2018, quando assinou seu primeiro contrato com uma gravadora. Na Califórnia, compreendeu melhor sua identidade queer e começou a se apresentar tanto de cara limpa quanto completamente montada.
Chappell Roan. Foto: Getty Images
Há quem estranhe o fato de uma mulher cisgênero e lésbica se apresentar como drag queen. No fogo-cruzado de opiniões nas redes sociais, tem quem queira estabelecer uma fórmula para essa arte, dizendo que homens fazem drag queen, e mulheres, drag king. Mas, além de trazer novas e bem-vindas camadas sobre as possibilidades de ser drag queen, Chappel joga, mais uma vez, um baita holofote numa comunidade que está aí, acontecendo e resistindo há centenas de anos.
Já existiam experiências que resultariam no que consideramos hoje uma drag queen na Grécia antiga. No teatro Elisabetano do século 16, os atores eram os responsáveis pelas atuações femininas. E, no Japão, no teatro kabuki, homens interpretam mulheres desde o século 17, quando elas foram proibidas de se apresentar.
Foi só por volta da década de 1970, no entanto, que a cena drag ficou mais parecida com a atual. Para ser mais preciso, em Nova York, dentro da cultura ballroom. Nesses bailes, membros da comunidade LGBTQIA+, principalmente pessoas negras, latinas e pobres, reuniam-se para competir em diversas categorias, como as de moda e de transformação.
Nos anos 1990, a comunidade deixou de ser apenas parte de um gueto. Em 1994, a marca canadense M.A.C lançou a campanha Viva Glam, com RuPaul, como uma ação para arrecadar fundos para instituições que cuidam de pessoas vivendo com HIV. Naquele ano, outro lançamento chamou a atenção para as queens: a estreia do filme Priscilla, a rainha do deserto, longa vencedor do Oscar de melhor figurino.
RuPaul. Foto: Getty Images
Can I get an amen?
No mesmo período, no Brasil, um jovem estilista paulistano se encantava por uma drag na entrada de uma boate. Alexandre Herchcovitch se deparou com Marcia Pantera e ficou fascinado por sua imagem. Ele perguntou à performer se podia fazer uma roupa para ela. A resposta foi sim. Tempos depois, Márcia ficaria conhecida como a Rainha do Bate Cabelo, e Herchcovitch, como um dos maiores criadores do país.
“Fiquei mais atento quando conheci a Márcia. Comecei a fazer roupas para ela e entendi melhor o universo”, diz Alexandre. O encontro foi mais uma compreensão de Alexandre sobre o que ele sempre curtiu, desde adolescente, quando viu Boy George. “Ele se autodenominou drag pouquíssimas vezes. Só lembro de um ou dois registros sobre o assunto, mas ele é um homem usando artifícios supostamente femininos para se sentir bonito. Foi um alerta sobre a liberdade e a possibilidade de transformar o corpo através da moda e da maquiagem.”
Alexandre Herchcovitch não considera que a arte drag queen o influenciou na construção de um visual. Foi bem mais que isso: “Influenciou o meu trabalho por completo. Quando penso no quão livre eu me sinto para realizar as minhas coleções, fazer o que acredito, isso tem a ver com elas serem livres e fazerem o que querem”.
Ao observar Marcia Pantera e outras drags da década de 1990 e recriar a silhueta de seus corpos com espumas nos quadris e no busto, ele entendeu que aquilo era uma aula de moda. “Em termos de pesquisa, foi muito interessante, porque eu estava fazendo uma roupa supostamente feminina para o corpo de homem, modificado para parecer com o de uma mulher. Isso foi um superexercício de modelagem, um grande laboratório.”
Marcia Pantera. Foto: Getty Images
Para Walério Araújo, a relação com o universo drag queen também foi mútua. “Elas queriam alguém que fizesse os looks e tivesse um conceito de moda. E eu precisava de modelos para mostrar o meu trabalho”, lembra. “Antigamente, não era fácil encontrar roupas com plumas, paetês e brilhos. Tinha que fazer sob medida, achar alguém para desenhar, tirar o molde e estar de acordo com o que você queria usar e causar.”
Sua primeira cliente foi Silvetty Montilla, drag queen histórica da noite paulistana. Depois, ele passou a trabalhar com o que chama de “a primeira geração de drags brasileiras a ficarem popularmente conhecidas”, como Dicesar, Dimmy Kieer, Divina Núbia, Verônika e Léo Áquilla (a então drag queen de Leonora Áquilla). Walério também é eternamente grato à travesti Rosana Starr por ter lhe apresentado Elke Maravilha – mais uma drag mulher para o caldeirão, muito antes de Chappel Roan existir.
“Elke sempre fez parte desse universo, principalmente no corpo de jurados dos concursos, mas também inventando uma figura muito visual. Produzi para ela ao longo de 20 anos, o que me deu essa visibilidade toda. Ela era a mãe dos gays, das travestis e das drags queens aqui”, comenta Walério.
Elke Maravilha. Foto: Getty Images
Além de já ter feito uma coleção inspirada na cultura drag, em 2013, na Casa de Criadores – nela, algumas modelos estavam pintadas de laranja e tinham glitter por todo o corpo –, o estilista recorda que já foi transformista. “Tinha shows que eu fazia drag. Mas na maioria das vezes eu era transformista dublando Sade Adu, com vestidos de concursos de miss”, conta. “Nos anos 1990, no Brasil, a gente diferenciava drag de transformista. Drag é bate-cabelo, música disco. As transformistas se vestiam para ocasiões sociais, com vestidos de festa e dublavam nos shows”, explica.
Quando o termo drag queen foi importado dos Estados Unidos para o Brasil, no final do milênio, algumas nomenclaturas ainda carregavam muitas ambiguidades. Naquela época, as performers brasileiras consideravam drag queen uma parte do transformismo mais conectada à noite, aos shows e às montações exageradas. Para deixar o assunto ainda mais complexo, embora não tenha associação direta com identidade de gênero ou sexualidade, a palavra transformista foi muito empregada em referência a mulheres trans e travestis por aqui.
Entre várias artistas brasileiras chamadas ou autointituladas de transformistas estão nomes como Rogéria, Divina Valéria, Jane di Castro, Cláudia Celeste, Eloina dos Leopardos e Divina Aloma. Há quem também entenda essa experiência de montação muito brasileira, algo que não necessariamente bebe de influências europeias ou estadunidenses. Porque, sim, a cena nacional tem suas especificidades.
“O brasileiro é observado por todo o mundo por sua maneira única de viver, de se relacionar e consumir. Não seria diferente no caso da cena drag. Nós somos únicas no jeito de dançar, de olhar e principalmente na voracidade das nossas performances – sobretudo pela vivência de artista LGBTQIAPN+ no país que mais mata membros dessa comunidade no mundo”, afirma Rubi Ocean, estilista e ex-participante da primeira versão brasileira de RuPaul’s Drag Race, em 2023.
Rubi Ocean. Foto: Divulgação
Aos 13 anos, Ruby conta que encontrou uma máquina de costura portátil na casa dos pais e começou a fazer roupas. Desde então, nunca mais se distanciou da moda. “Na arte transformista, encontrei o elo perfeito entre o meu eu artístico e a minha produção. Eu virei a minha própria vitrine”, fala. Ruby já desfilou para a Casa de Criadores com a marca Ruma, assinada com a amiga e também drag queen e ex-participante do mesmo reality show, Hellena Malditta. O projeto está em pausa, enquanto as artistas desenvolvem suas carreiras.
Da completa marginalização ao mainstream, hoje a cena brasileira conta com nomes internacionalmente famosos, como Grag Queen, Gloria Groove e Pabllo Vittar. Essa última virou uma das drag queens mais bem-sucedidas do mundo: é dona de seis álbuns de estúdio, tem uma coleção de moda com a Adidas, uma campanha global com a Calvin Klein e 1,8 bilhão de streams em suas músicas. Já se apresentou no Coachella, na ONU, para o aniversário da rainha Elizabeth e foi convidada pela própria Madonna para cantar ao seu lado, na frente de 1,6 milhão de pessoas, na Praia de Copacabana, no Rio de Janeiro. Este ano Miranda Lebrão também ganhou atenção mundial ao ser a primeira brasileira integrante de um programa internacional da franquia RuPaul’s Drag Race.
Com tantos olhos para a vivacidade drag como fonte de frescor para a moda, a visibilidade dessa comunidade não pode ser confundida com apropriações da cultura pelo mercado, sem necessariamente a valorização de suas raízes. “As complexidades de nossas trajetórias dificilmente são totalmente contempladas por uma visão que só quer alcance mercadológico. Muitas vezes, por trás da propagação da arte, há interesses de marcas e problemas como núcleos criativos limitados em diversidade, a falta de uma devolutiva financeira e por aí vai. Isso pode interferir ou até se interpor à real causa”, avalia Ruby.
Enquanto Chappel dedica o seu sucesso à comunidade e leva Sasha Colby para o palco junto com ela, é sempre bom lembrar que as drag queens não estão na moda. As drag queens nunca saíram da moda.