Como pequenas, médias e grandes marcas estão enfrentando a pandemia

A crise econômica desencadeada pela Covid-19 afetou de forma distinta empreendedores e empresas de moda. E a recuperação promete ser igualmente diferenciada.


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“Em 2020, a gente teve que pensar, se articular, se ressignificar e se reinventar rápido”, diz Ângela Brito, estilista cabo-verdiana radicada no Rio de Janeiro. “Não achávamos que fôssemos ficar tanto tempo nessa situação. Vínhamos de um 2018 e 2019 que, mesmo com algumas dificuldades, permitiram uma reserva de caixa. Em 2021, entrei sem nada. A gente brinca que é um dia de cada vez, se for para afundar, vamos afundar todos juntos.”


Todos, no caso, são ela e as outras duas pessoas que integram sua equipe. Ângela fez questão de não demitir ninguém. Há mais de seis meses no seu país natal – com as fronteiras fechadas, ela não consegue voltar ao Brasil –, o trabalho continua 100% remoto. “O Kelvin Emiliano, meu assistente, e a Ana Pires, do financeiro, vão para o ateliê quando precisa, uma vez por semana, no máximo, para encaixotar tudo para colocar no correio”, conta.

Como previsto na reportagem de ELLE do ano passado, marcas independentes e com estruturas enxutas foram as que mais sofreram com as consequências da Covid-19 na economia, no consumo e, principalmente, na vida. Ainda que moda não seja um serviço ou bem essencial, é um dos setores que mais emprega no Brasil, o segundo dentre as indústrias de transformação. O trabalho dessas empresas é, de muitas maneiras, um tipo de resistência e, mais ainda, sobrevivência.

No início da pandemia, no ano passado, Ângela estava no meio de uma coleção, e tinha mais segurança de que conseguiria lançá-la. Hoje, ela já não tem tanta certeza. “Tudo é mais prioridade do que lançar uma coleção no momento.” Sobre a situação financeira incerta e decrescente de muitas marcas, a estilista acredita que pouco se fez quanto à união da indústria. “No Brasil, patrocínios e parcerias não acontecem. Ainda sou considerada estrangeira, então sei que as coisas são mais difíceis para mim. Se cada marca pequena tivesse um apadrinhamento de uma grande, as coisas seriam mais fáceis. Estamos acostumados a nos virar com pouco e fazer milagre.”

Isaac Silva que o diga. Em 2020, o estilista deu início a um namoro com a Havaianas que resultou em um convite da marca de calçados para uma colaboração. “Foi o que fez a gente sobreviver”, diz. “Mais do que isso, abriu as portas para que outras grandes empresas invistam e colaborem com marcas pequenas. É sobre distribuir renda e influência, além de mostrar que realmente acreditam na moda brasileira.”

Isaac Silva em sua loja, na capital paulista.

Isaac Silva em sua loja, na capital paulista.Foto: Juliana Farinha/Elle Brasil.

A collab serve de mote para a coleção que ele apresentará na São Paulo Fashion Week, no próximo sábado, 26.06. Porém, os últimos meses não foram dos mais fáceis para Isaac. Ele foi um dos primeiros a fechar loja e ateliê, em março do ano passado. Foi também um dos últimos a reabrir, e por pura necessidade de sobrevivência do negócio. “A marca é meu sonho. Além disso, tenho funcionários que dependem de mim. Não sou só eu. É minha responsabilidade manter ela de pé”, continua.

Foram cinco meses com as portas fechadas em seu endereço na Santa Cecília, em São Paulo. Nesse tempo, fortaleceu o online e começou a explorar novos canais de venda, como o Facebook, onde encontrou uma clientela de mais de 45 anos, até então desconhecida. A equipe de vendas que trabalha nas novas plataformas se tornou amiga das clientes, fazendo o atendimento mais personalizado e pessoal, como acontecia na loja.

Durante a pandemia, o estilista não demitiu nem admitiu ninguém. Para ajustar as contas, diminuiu o nível de produção. “As vendas caíram muito e nós tivemos que parar um pouco”, explica. Marcas pequenas e independentes têm custos mais altos para produzir. Como criam em pequena escala, a confecção fica mais cara e há menos poder de barganha com fornecedores. Sem apoio de empresas maiores e com acesso limitado a linhas de crédito, a solução é reduzir a oferta.

“A marca é meu sonho. Além disso, tenho funcionários que dependem de mim. Não sou só eu. É minha responsabilidade manter ela de pé.” Isaac Silva

Conhecida por uma moda slow-fashion, com produtos feitos de maneira responsável social e ambientalmente, Flávia Aranha também precisou pisar no freio e ajustar a quantidade de produtos lançados a cada coleção. “Esse modelo ajudou muito no fluxo de produção, que agora têm ciclos mais leves e menores”, fala a estilista. Porém, a sobrevivência no último ano se deu, principalmente, pelo investimento externo. Em junho de 2020, a empresa abriu capital para novos investidores e captou recursos para poder crescer. “Continuo sócia majoritária, mas foi superduro pensar em abrir loja nova na pandemia, um dos combinados com os novos investidores”, explica.

A injeção de capital foi essencial para o reforço no braço digital da marca, algo que se tornou urgente com o fechamento das lojas nas quarentenas. Em 2020, o e-commerce de Flavia Aranha cresceu 1136%, comparado ao ano anterior. Hoje, seus vendedores se especializaram em vendas pelo WhatsApp e pelo Instagram, mantendo a experiência de compra humanizada.

Como parte da expansão, a grife abriu uma segunda loja, no bairro do Jardins, em São Paulo, e viu as vendas crescerem 62% no primeiro trimestre de 2021, em relação ao mesmo período do ano passado. Agora, Flávia se prepara para uma nova rodada de captação de recursos, dessa vez com foco em mulheres investidoras. “Na primeira, só haviam homens brancos, héteros e cis. Já sabia disso, mas ficou muito claro que o dinheiro está todo na mão deles, e tem muitas mulheres incríveis por aí.”

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Processos de tingimento natural no ateliê de Flavia Aranha, em São Paulo.Foto: Juliana Farinha/ELLE Brasi.

Investimento externo e um empréstimo no banco também foram os salvadores de Rafaella Caniello. Em setembro, passado, a estilista quase encerrou as atividades da Neriage. Após seis meses trabalhando sozinha, parecia não haver luz no fim do túnel. A decisão já estava tomada quando sua ex-sócia, Laura Cerqueira Leite, voltou ao Brasil da França. Com crédito e a sociedade refeita, o negócio não só sobreviveu, como se reestruturou e, agora, começa a se expandir.

Como sempre trabalhou muito sozinha, Rafaella não precisou demitir ninguém por conta da crise, e, hoje, se prepara para fazer as primeiras contratações da Neriage. “Nos unimos com algumas organizações para criar vagas específicas para minorias. Até o fim do ano, teremos 6 ou 7 pessoas na equipe”, explica. No segundo semestre, a marca planeja abrir sua primeira loja-ateliê, no bairro de Pinheiros, em São Paulo. A inauguração, contudo, depende dos protocolos sanitários e da diminuição do número de mortes e novos casos de infecção por Covid-19. “É um momento estranho para falar de loja física, mas era um sonho antigo”, confessa.

Com muita marca em situação vulnerável ou precisando de injeção de capital para sobreviver, houve um frenesi de compras e fusões de grandes empresas. No ano passado, o Grupo Soma (do qual fazem parte as marcas Animale, Farm, Cris Barros e Maria Filó) adquiriu a NV, grife da empresária Nati Vozza, por 210 milhões de reais. Neste ano, foi a vez da Hering se juntar ao conglomerado carioca, numa transação avaliada em 5,14 bilhões de reais. Também em 2020, a Reserva se fundiu ao grupo Arezzo, que, recentemente, comprou a marca de streetwear BAW Clothing, num raro e ainda incipiente movimento de investimento em marcas menores e independentes.

Mudanças estruturais

Além de todas as incertezas e inconstâncias da gestão de um negócio durante a pandemia, tem ainda o impacto criativo. “Fica tudo mais limitado quando não podemos sair, encontrar pessoas e assimilar outras informações. Só temos acesso àquilo que nos rodeia”, opina Rafaella. Para André Boffano, da Modem, a solução foi optar por um dos dois caminhos: criar com base naquilo que vemos na Internet ou mergulhar na essência da marca. Escolheu o segundo.

Desde março do ano passado, a Modem se dedica à aprimoração de peças-chave e atualização de estilos basilares de sua identidade. “A alfaiataria, por exemplo, já não é mais a mesma. Trouxe outra técnica para aumentar o conforto, tirei o forro. Mais do que nunca, quero tudo ainda mais impecável. Isso é imprescindível, para provar para o meu cliente que aquela roupa vale o que custa”, explica o estilista. Para ele, o grande desafio é encontrar o equilíbrio entre preço, qualidade e inovação. “Temos a consciência de que não dá para fazer apenas produtos de 4 mil reais. Precisa existir um balanço entre bonito, legal, diferente, que faça sentido, qualidade e preço honesto.”

A preocupação era sobreviver e manter o negócio de pé, pagando todos os funcionários devidamente. “Não precisei diminuir minha equipe, mas foi necessário muito planejamento”, conta. Para conseguir manter o fluxo de investimento, André precisou trabalhar em dobro, oferecendo consultoria de estilo e desenvolvimento de produtos para marcas com forte exposição digital. São labels como a da ex-BBB Rafa Kallimann, da influenciadora Angelica Bucci e outros nomes novos do mercado, como a etiqueta carioca Cosmo Rio.

Modem

Modem.Foto Cortesia | Modem

“Neste momento, o foco é no digital. Nada mais lógico do que ficar próximo dessas pessoas, em sua maioria influenciadoras com muitos seguidores. Foi uma nova experiência tanto pessoal quanto profissional. Antes, só pensava em varejo, não tinha esse foco tão grande no online. Sem desfiles presenciais, como ser mais visto do que através delas?”, explica.

Patrícia Bonaldi, nome especializado em roupas de festa, também precisou inovar no front comercial, ainda que não tão drasticamente. “Tivemos de olhar para o nosso produto e dar um tiro certeiro. O primeiro deles foi nossa linha de pijamas, que abriu vários caminhos para a marca e agora faz parte de todas as coleções”, conta a estilista e empresária.

Com a novidade, seu preço de entrada diminuiu – os conjuntos custam em torno de 420 reais, um valor mais em sintonia com o momento que vivemos. Além disso, a estilista mineira reduziu quase pela metade suas coleções e decresceu a oferta dos vestidos de festa. “Foi um exercício muito legal parar para pensar quantas coisas a gente ofertava desnecessariamente. Agora, estamos fazendo coleções mais enxutas e mais eficientes financeiramente.”

“Foi um exercício muito legal parar para pensar quantas coisas a gente ofertava desnecessariamente. Agora, estamos fazendo coleções mais enxutas e mais eficientes financeiramente.” Patricia Bonaldi

Em sua fábrica, a redução ficou em torno de 50% da capacidade, com funcionários do grupo de risco sendo mantidos em casa, desde o começo da pandemia. A parte de comercial, varejo e e-commerce também trabalha inteiramente de casa. Se no início houveram alguns cortes, logo a empresa voltou a contratar e três novas lojas foram abertas desde março de 2020. “No começo, estávamos com medo, por isso seguramos um pouco a produção. O faturamento caiu muito durante esse período, despencou nos primeiros meses, mas voltou a subir.” No primeiro trimestre de 2021, o faturamento subiu 62% ante o mesmo período de 2020.

O foco de vendas também mudou, com foco no digital, que cresceu 300% só no ano passado. Os vendedores se tornaram experts em vendas online, tanto pelo Whatsapp, quanto nas malinhas de roupas enviadas para as clientes mais assíduas provarem e comprarem em casa. As metas também diminuíram, refletindo o atual momento, e se tornaram mais possíveis. Ainda neste ano, Patrícia Bonaldi planeja reinaugurar sua flagship em São Paulo, agora com endereço na rua Haddock Lobo, nos Jardins, unificando escritório e loja com marcas parceiras e um café de Belo Horizonte.

O novo fast-fashion

Ainda que mais preparadas para enfrentar reveses econômicos, marcas de grande porte também foram impactadas pela crise pandêmica. As três maiores varejistas do país, Renner, Riachuelo e C&A (duas brasileiras e uma holandesa com sede no Brasil), foram bastante afetadas nos primeiros meses de pandemia, mas conseguiram se adaptar e recuperar em ritmo bastante acelerado. Conforme apurado pela reportagem, os resultados financeiros no primeiro semestre de 2021 das três empresas já são equivalentes ou superiores aos números de 2019.

O crescimento nos números se deve em muito ao afrouxamento das medidas de restrição e distanciamento social, mesmo com o ainda elevado número de novos casos e mortes. Nota-se que grande parte dos clientes voltou a consumir presencialmente, porém, é o digital o grande responsável pela rápida recuperação nas vendas.

Enquanto as medidas protetivas e as recomendações da OMS ainda eram incertas, mudando de minuto a minuto, Renner, Riachuelo e C&A não tardaram a mover suas estruturas. De início, boa parte do quadro de funcionários entrou em esquema de home office e as lojas foram fechadas por tempo indeterminado. Contudo, em março de 2020, as três marcas já apostavam com força no digital. Faltava apenas adesão e conhecimento da maioria de seus clientes. Situação revertida em velocidade impressionante, muito em parte devido a um bom fluxo de caixa e poder financeiro.

“No início da pandemia, o setor foi um dos mais afetados. As pessoas ainda precisavam de outras coisas. Aos poucos, tudo foi voltando, e os consumidores perceberam que precisam de moda tanto para se vestir quanto para se expressar, ainda que com um consumo menor.” Fabio Faccio

As vendas online da Renner cresceram 126%, no ano passado. Somente no 1º trimestre de 2021, o e-commerce da C&A teve alta de 176% em sua receita líquida em comparação ao mesmo período de 2020. Na Riachuelo, o crescimento foi de 204,3% também neste primeiro trimestre.

“No início da pandemia, o setor foi um dos mais afetados. As pessoas ainda precisavam de outras coisas. Aos poucos, tudo foi voltando, e os consumidores perceberam que precisam de moda tanto para se vestir quanto para se expressar, ainda que com um consumo menor”, diz o presidente da Renner, Fabio Faccio. “O cenário ainda é bastante volátil, sempre aliado aos períodos de menor restrição. Quanto maior o aumento da vacinação, cresce também a demanda por itens fashion”, explica.

Na Riachuelo, a história é parecida. O online já era forte, mas recebeu ainda mais investimento com a maior parte das lojas fechadas. Hoje, se você quiser comprar alguma peça, consegue mandar um WhatsApp para a marca, onde um robô pede seu CEP e te direciona para o atendimento da loja mais próxima da sua casa. A partir de então, você conversa com um vendedor e faz seu pedido. “Ao mesmo tempo em que é super digitalizado, é também um processo humano também”, comenta Marcella Kanner, gerente de marketing da empresa.

Já na C&A, Fernando Brossi, vice-presidente de operações da empresa, as vendas pelo aplicativo de mensagens cresceram 10 vezes desde o começo da pandemia. Iniciativas como a Minha C&A, um canal de consultoras online que ajuda consumidoras a escolher peças, também ganhou relevância significativa. “O nosso mercado sempre foi de autosserviço. Nesse novo braço, nós entramos em contato com a cliente, fazendo um estudo do que ela já comprou, do que gosta e desenhamos uma oferta que tenha relevância para a pessoa. Metade das nossas vendas online vêm do receptivo e metade do ativo”, explica o executivo. Para lojas de departamento, que sempre se apoiaram quase completamente no fluxo das unidades físicas, esse é um dado relevante.

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Funcionária da C&A utiliza o canal de vendas digital, no WhatsApp.Foto: Rodrigo Paiva.

Com centenas de funcionários, fábricas e fornecedores, as três empresas também adotaram um esquema de home office que dificilmente deve ser deixado no passado quando a pandemia acabar. “Vamos continuar trabalhando num modelo híbrido. Algumas atividades não tem tanta necessidade de serem presenciais, outras tem mais. Estamos tentando nos adaptar para a função e para as pessoas. Tem quem prefere trabalhar no escritório por não ter comodidade em casa, por exemplo”, explica Faccio, da Renner. Segundo a empresa, nas fábricas, as exigências com os protocolos de segurança como capacidade reduzida, uso de máscaras, higienização, distanciamento e conscientização dos funcionários seguem vigentes.

Ao falar de roupas, comunicação e marketing, Renner, C&A e Riachuelo concordam que a moda confortável não deve sair de cena tão cedo. Apesar disso, como algumas pessoas estão voltando ao trabalho presencial, as categorias de workwear voltam a crescer após um período em baixa. Outra seção que mereceu destaque nas três marcas foi a de peças esportivas, visto que os exercícios em casa também ganharam força nos meses de isolamento.

Com operações rápidas e decisões assertivas, as três conseguiram adaptar seus lançamentos mês a mês, levando em consideração a situação do momento. “Entendo que temos uma estratégia nova. A velocidade dos lançamentos, que já era grande, agora é muito maior. Temos a linha Mindset, que foi criada nesse contexto, com cápsulas quinzenais para testar as tendências do momento e usar esse aprendizado para o mainstream”, explica Brossi, da C&A. Testes como esse, sobre o que performa mais ou menos são essenciais em um contexto tão delicado, que requer assertividade.

Leia a próxima matéria da série abaixo:

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