O que levou a Dior a desfilar a coleção de cruise 2024 no México?

As culturais locais, a adoração pela natureza, a espiritualidade e principalmente a artista Frida Kahlo são alguns dos pontos que levaram a diretora de criação Maria Grazia Chiuri à Cidade do México.


desfile Christian Dior Cruise 2024
Vestidos Dior com bordados da artista Elina Chauvet. Foto: Divulgação



Maria Grazia Chiuri sempre teve uma quedinha pelo México. Quem acompanha a diretora de criação sabe que são muitas as referências culturais daquele país em seu trabalho. Aí, em setembro do ano passado, rolou uma exposição dedicada à artista Frida Kahlo no museu Galliera, em Paris, a Beyond Appearances. A estilista foi, conheceu a curadora e amou. Pronto, estava decidido: o desfile de cruise 2024 da Dior seria na Cidade do México.

Onde foi o desfile?

A passarela foi montada nos corredores e no pátio central do Colégio de San Ildefonso, onde Frida Kahlo estudou e conheceu o marido e também artista Diego Rivera – os murais nas paredes da construção são dele. E sim, boa parte da coleção gira em torno da vida, obra e pessoa de Frida, literal e metaforicamente. Mas isso fica para depois. 

Foto do pátio do colégio de san ildefonso na Cidade do México.

Pátio do Colégio San Ildefonso. Foto: Adrian Dirand

Por si só, o prédio histórico já dava conta do quê grandioso da apresentação – e com um link perfeito para o pensamento por trás da coleção. O que ninguém previa (nem mesmo a meteorologia) era a chuva que começou a cair forte pouco antes do desfile. Provavelmente devido às imensas nuvens de água, cinzas e gases vulcânicos expelidos recentemente pelo vulcão Popocatepetl, a quase 100km da capital mexicana. Com uma leve névoa de umidade no ar, o reflexo da iluminação nas gotas e no piso molhado deu todo um outro nível de drama para a imagem final. 

Como foi a coleção de cruise 2024 da Dior?

Bem naturalzona, sem esforço ou pretensão. Da beleza ao styling e, principalmente, na construção das roupas, tudo comunica leveza, frescor e um senso de personalidade forte. Aliás, é interessante notar como a diretora de criação se mostra mais à vontade nas coleções de meia-estação (pre-fall e cruise).

O melhor exemplo disso são as muitas camisas de algodão, presas despretensiosamente por dentro de saias plissadas ou rendadas, ou caindo soltas sobre calças amplas e, vez ou outra, combinadas a coletes bordados ou ponchos de cashmere.

Tem ainda os ternos com aparência menos arrumada, tecidos leves, cores suaves e um corte de calça nem largo nem justo, com barras encurtadas e botas de cowboy (peça que passa por outro um revival). Numa leitura mais fiel de trajes usados no país ao longo da história tem versões de alfaiataria próximas ao corpo, caimento firme, quase sempre em preto ou branco com debruns contrastantes. E, claro, a jaqueta Bar, dessa vez com a parte da frente de veludo, material encorpado que reforça as referências dos trajes hispânicos incorporados à cultura mexicana.

Um dos pontos altos são as interpretações dos huipiles em novos tecidos e proporções, como as em denim ou encurtadas e usadas com calças jeans de modelagem ampla. São looks com um bom equilíbrio de todas as frentes criativas envolvidas nesta coleção de cruise 2024 da Dior: a feminilidade tão cara à Christian Dior, a predileção da Maria Grazia por roupas fáceis, confortáveis e com pitadas de sua origem italiana, além do seu imenso respeito pelas mulheres, e a incorporação e troca com profissionais locais.

Além de um closet só de peças básicas em tons neutros, quiet luxury é sobre isso. E sob um ponto de vista bem mais interessante.

As borboletas de Frida Kahlo

Tem um vídeo no canal da Dior no YouTube, em que a diretora de criação Maria Grazia Chiuri faz uma analogia entre a vida e obra de Frida Kahlo, o ciclo natural e a simbologia das borboletas. A artista as amava, desenhou incontáveis delas, bordou e tantas outras e até mandou colocar um quadro com elas acima de sua cama, quando já não podia se levantar. Para ela, que não pôde concluir nenhuma gravidez, teve a perna amputada e a movimentação limitada por uma má-formação congênita, os insetos eram símbolos de transformação e regeneração.

Maria Grazia enxerga Frida como uma própria borboleta, “uma exaltação de fertilidade, de criatividade”, comenta no pequeno filme. “Ela não via sua condição física como um limite. A parte mais incrível de sua história é a superação dos limites por meio de sua arte.” Para a estilista, a artista também transcendeu seu corpo através de suas roupas, que se tornaram representação, proclamação, protesto e afirmação. 

obra de Frida Kahlo.

Naturaleza muerta, 1942. Foto: Divulgação | Museo Frida Kahlo

 borboletas no quarto de Frida Kahlo

Quadro de borboletas fixado acima da cama de Frida Kahlo. Foto: Divulgação | Museo Frida Kahlo

Daí, as incontáveis estampas, bordados e acessórios na forma do animal. As representações são também uma maneira de expressar a leveza, naturalidade e liberdade que permeiam a coleção de cruise 2024. 

Não custa lembrar, que a artista teve papel essencial na batalha e conquista por direitos das mulheres. Desde os 19 anos, Frida usava um terno de três peças masculino, transgredindo sua feminilidade para reivindicar uma independência acima de tudo intelectual. Suas obras são carregadas de elementos políticos e socioculturais em constante confronto com convenções e costumes patriarcais e imperialistas. Sem contar em sua própria trajetória de vida ao lado de Diego Rivera.

¡Que caiga con fuerza el feminicida!: a performance de Elina Chauvet

“Que caia com força o feminicida” era o que se ouvia ao fim do desfile de cruise 2024 da Dior. A frase é parte da música “Cancíon sin miedo”, trilha emocionante para a performance da artista Elina Chauvet. Desde que chegou à Dior, Maria Grazia aproveita as apresentações para jogar luz ao trabalho de artistas mulheres. Desta vez, não é diferente. 

Elina Chauvet, mexicana de Chihuahua usa suas obras para falar da ausência e do silêncio em torno das incontáveis mulheres desaparecidas em seu país. A taxa de feminicídio no México é altíssima – só perde para o Brasil na América Latina. Só no ano passado, ultrapassam os mil. Um de seus trabalhos mais famosos é a Zapatos Rojos, que consiste em vários sapatos vermelhos – sem os corpos de suas respectivas donas – espalhados em praças e ruas do México e outros países da América Central e da Europa.

 

A partir de 2012, a artista deu início a uma série inspirada na história da performer Pippa Bacca. Em 2008, a italiana deixou seu país rumo ao Oriente Médio usando apenas um vestido branco de noiva. A ideia era passar uma mensagem de paz e casamento entre diferentes pessoas e nações. Porém, depois de apenas três semanas no projeto, ela foi assassinada por um motorista que lhe ofereceu carona na Turquia. Nasceu assim a performance Confianza, que já rodou o mundo em diversas residências artísticas. Nela, Elina borda palavras com linha vermelha e um vestido de noiva.

 

Durante os meses que antecederam o desfile de cruise 2024 da Dior, Elina e um grupo de 16 bordadeiras costuraram palavras e símbolos com linha vermelha em 20 vestidos de musseline de algodão, inspirados em desenhos do arquivo da maison e confeccionados em Paris.

Mas por que o México, hein?

Como já falamos, Maria Grazia é levemente obcecada pelo país. Só para ficar nos exemplos recentes, a diretora de criação usou elementos culturais do país nas coleções de cruise 2018 (na Califórnia) e 2019 (em Chantilly, na França), aquela com as escaramuzas, o grupo de amazonas que reivindicou o direito de competir nos tradicionais rodeios locais. “Quando as descobri, achei que poderiam ser uma referência interessante na minha busca por mulheres inspiradoras e poderosas”, disse a estilista, à época do desfile.

Mas a relação da maison com o México é antiga. Lá pela metade do século 20, Christian Dior foi um dos primeiros estilistas a investir no potencial mercado estadunidense depois da segunda guerra. Sua primeira loja no continente americano foi inaugurada em 1948, na 5ª Avenida, em Nova York, com decoração quase idêntica à da flagship parisiense, na Avenue Montaigne. A ideia era reproduzir o glamour e excelência da alta-costura entre uma clientela mais interessada no que acontecia do outro lado do atlântico. As coleções eram reproduções de modelos originais ou criações especiais para a região. E foi um sucesso.

Sucesso, aliás, não limitada às fronteiras dos EUA. Em 1950, a maison fechou um contrato de exclusividade com a loja de departamentos mexicana El Palacio de Hierro. A embaixadora era ninguém menos que a atriz e musa do cinema mexicano María Félix. Quatro anos mais tarde, a marca realizou uma turnê de três meses pela América Latina para apresentar a linha H, da coleção de inverno 1954, com passagem garantida no país.

Quando rolou a Semana Francesa na Cidade do México, em 1972, duas apresentações da coleção de alta-costura de inverno daquele ano, assinada pelo diretor criativo Marc Bohan (Christian Dior morreu em 1957) aconteceram no hotel Camino Real. Quase uma década depois, em 1980, o mesmo estilista desfilou o prêt-à-porter e a haute couture de verão 1981 no Casino del Bosque na presença de Marc Bohan. Os eventos tinham fins beneficentes e filantrópicos, respectivamente.

look do inverno 2012 de alta-costura da Dior.

Dior alta-costura, inverno 2002. Foto: Getty Images

Já o inverno 2002 de alta-costura da maison, sob comando de John Galliano, foi fortemente inspirado por uma série de elementos de culturas locais. E, sim, como boa parte de tudo que acontecia naquela época, foi bem problemático.

O que muda agora?

Aquilo que já falamos. Cada coleção cruise é uma oportunidade para Maria Grazia estabelecer uma relação de troca entre os ateliês da Dior, em Paris, e o artesanato de diferentes regiões e comunidades do mundo. É quase como um projeto de pesquisa, permitindo um estudo aprofundado das implicações sociais e históricas das culturas artesanais – dando um empurrãozinho extra no marketing e comunicação da empresa, num momento em que responsabilidade socioambiental chama cada vez mais a atenção das consumidoras.

De olho na preservação das técnicas tradicionais e na salvaguarda das práticas culturais incorporadas pelos têxteis, a diretora de criação reuniu diferentes gerações de artesãos – muitos deles de comunidades indígenas – de diferentes regiões do México. As atuações variaram da criação de peças originais a técnicas de bordado e tecelagem aplicadas em roupas e acessórios desenvolvidos pela marca.

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Huipil feito com supervisão do tecelão Remigio Mestas. Foto: Divulgação

No grupo de peças originais, um dos maiores destaques é Remigio Mestas. O produtor de tecidos artesanais é uma das figuras mais influentes e respeitadas na promoção e representação do artesanato da região de Oaxaca, onde nasceu. Para a coleção cruise 2024 da Dior, ele supervisionou a criação de quatro huipiles tradicionais, feitos com as técnicas únicas de tecelagem, tingimento e bordado de alguns grupos indígenas. 

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Look com bordados feitos pela Yolcentle Textile Workshop, de Hilan Cruz. Foto: Divulgação

Outro nome importante é o de Hilan Cruz, um tecelão nahua e estudante de antropologia social. Nascido em Tlacomulco Huauchinango, nos arredores da cidade de Puebla, ele é um co-fundador da tecelagem Yolcentle Textile Workshop. A empresa foi convidada pela Dior para criar camisas e vestidos com os bordados que refletissem a flora e a fauna da sua comunidade.

Narcy Areli Morales, fundadora da Rocinante, marca dedicada à revitalização do artesanato em Oaxaca desde 2012, trabalha com técnicas tradicionais para homenagear o patrimônio secular de sua região. Para essa colaboração, ela supervisionou a criação e produção de uma técnica de bordado conhecida como pepenado fruncido – aqueles com formas geométricas, plantas e animais, tudo supercoloridos – produzida por uma comunidade Mixtec exclusivamente feminina, localizada em San Lucas Redención e Tlaxiaco.

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Blusa com bordado pepenado fruncido, da Rocinante. Foto: Divulgação

Vender é importante, nem se discute. Com toda uma história de pano de funda, fica menos difícil convencer a cliente. Sempre foi assim. O que é diferente agora, é a atitude, a postura, a visão e a escuta. A noção da marca ou estilista europeu atravessar o Atlântico para doutrinar as pessoas das Américas com seus costumes, etiquetas e looks do dia não cola mais. Se já incomodava na época das colônias, imagina hoje. Ainda assim, são etiquetas fortes, que despertam desejo. 

Agora, para e pensa em quem você prefere: o gringo que chega reclamando de tudo, acha que fazemos tudo errado e jura de pés juntos que só ele e na terra dele é que sabem das coisas? Ou o simpaticão, que come churrasco, toma cerveja – no caso, tequila ou mezcal –, dança cumbia mexicana, empresta suas roupas para os novos amigos e mistura o que sobrou na mala com o que encontrou por lá?

Luigi Torre viajou a Cidade do México a convite da Dior.

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