Live NPC: o comércio dos afetos e amores objeto

O que o sucesso dessa nova modalidade de conteúdo tem a dizer sobre nós e a forma como estamos lidando com as relações afetivas no mundo digital?


ilustração live npc
Ilustração: Gustavo Balducci



Mal chegamos à metade da década e não paramos de nos surpreender com os fenômenos sociais que têm tomado conta da esfera digital. E as surpresas nem sempre são positivas. Entre as diferentes expressões online que chamaram a atenção nos últimos anos, podemos citar a aparição de figuras aterrorizantes em meio a singelos vídeos infantis, jogos e desafios entre adolescentes com tarefas que envolvem automutilação e até suicídio e, recentemente, a live NPC – uma nova modalidade de exposição em redes sociais, que esbarra em dinâmicas de humilhação e exaustão dos streamers/influenciadores. 

Apesar de ser um fenômeno novo, a live NPC toca em algumas velhas particularidades da psique humana, que se desdobram sob novas formas dentro da cultura da internet e nos fazem refletir sobre os perigos e potencialidades das nossas relações com o ambiente digital. 

O que é Live NPC?

A live NPC é um formato de transmissão ao vivo pela internet caracterizado por uma relação de ordens e reações. A comunidade que está assistindo envia emojis e comandos para o streamer e ele, por sua vez, reage a isso. Essas reações consistem em atos aparentemente banais, como fazer coraçãozinho com as mãos, brincar com objetos ou repetir exaustivamente a mesma frase enviada pelos usuários.

Um dos primeiros episódios virais dessa tendência surgiu na forma de um meme, no qual a streamer e influenciadora digital Kinechan repetia o nome de diferentes marcas, como Jefferson Caminhões e Chico Linguiça, vestida com orelhas de pelúcia e imitando traços estereotipados de personagens de animes. Outros influenciadores, como PinkyDoll, Karen Arara, Prizza, Júnior Caldeirão, também aderiram ao formato, cada qual com uma especificidade de seu personagem nas lives. Entretanto, o que parecia ser apenas uma piada, revelou-se uma real possibilidade – rápida e “fácil” – de ganhar dinheiro.

Para entender melhor isso, o criador de conteúdo Felca realizou uma série de lives desse tipo: durante duas horas por dia, ele se submeteu aos comandos de seus seguidores. Ao final de uma semana, ele mostrou ter arrecadado a impressionante quantia de quase 32 mil reais. A repercussão dessas lives foi tanta que o TikTok acabou alterando as regras de monetização dessas transmissões – o que gerou várias críticas a Felca por streamers que tinham boa parte de sua renda vinculada a esse tipo de conteúdo.

O NPC e a onipotência do universo digital

O termo NPC é uma sigla da cultura dos jogos digitais que significa non playable character (personagem não jogável). São as personagens figurantes das narrativas dos jogos, cujos diálogos e ações são pré-programados para responder a situações e interações específicas com os jogadores principais (controlados por pessoas de verdade). Isso implica que NPCs não são elementos ativos, mas objetos relacionados à experiência imersiva do jogador dentro do universo virtual.

Com suas reações restritas, um NPC costuma estimular nos jogadores as mais variadas tentativas de interação – o que pode incluir algum nível de sadismo. Não raro, os jogadores gostam de “pesar a mão” para testar quais os limites da programação desses personagens. Por exemplo, o que aconteceria se, em vez de começar um diálogo pacífico com esse personagem, o jogador o matasse? Ele reagiria? Ou ele não tem programação suficiente para isso? 

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As origens do termo nos ajudam a compreender como as lives NPC são uma transposição da relação digital para a pessoal. As relações que ocorrem permeadas pelo digital/virtual (videogames, TikTok, Instagram) proporcionam a experiência de viver em um mundo isento de punições e regras. Comentários agressivos no YouTube, matanças dentro dos jogos, tweets que demonstram opiniões não populares: tudo isso está relacionado com a possibilidade de realizar um desejo sem o ônus da realidade. Você não pode atropelar seu chefe num momento de raiva – mas em um jogo digital, sim. Você não pode expressar uma opinião sem consequências da lei – nas redes sociais, no entanto, muitas vezes isso pode passar impune. 

Assim, as lives NPC acabam estimulando ainda mais essa sensação de onipotência, principalmente porque há uma relação de dinheiro envolvida – o que transforma essa relação entre duas pessoas em uma transação comercial de interações humanas. Se você quiser, pode mandar alguém falar repetidas vezes “eu te amo”, mesmo que isso esgote a pessoa.

Objeto de prazer ou estratégia de sobrevivência?

Durante as lives, ao menos duas pessoas  interagem. É possível ler esse fenômeno a partir de duas perspectivas distintas: daqueles que dão os comandos (espectadores/doadores de dinheiro) e daqueles que se submetem aos comandos (pessoas NPCs/streamers).

Pela ótica dos espectadores, temos uma pessoa real dando ordens para conseguir alguma interação, por mais artificial que ela seja. Dentro dessa dinâmica, as possibilidades são infinitas; desde uma criança que quer ver um streamer reagir a um som de pum até alguém que quer testar o limite dos comandos naquela pessoa (como espirrar 200 vezes seguidas, ou pedir que mulheres com trajes hipersexualizados gemam o seu nome).

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Ocorre que essa tentativa de realizar desejos perpassa pelo anonimato e objetificação do streamer e, sobre isso, a psicanálise lança algumas considerações. Muitas vezes, em vez de nos relacionarmos com outros sujeitos, temos a fantasia de nos relacionar com objetos. Em linhas gerais, amar alguém como se ama um objeto é pressupor que esse alguém pode ser utilizado para nossa própria necessidade, sem considerar que aquela pessoa também possui demandas e particularidades. Nas lives NPC isso toma outro nível, principalmente porque há uma relação financeira envolvida. As pessoas estão constantemente encarando a pessoa NPC como um objeto feito para seu prazer, quase como um vibrador psíquico de afetos.

Por parte das pessoas que incorporam NPCs, essas lives podem ser encaradas como verdadeiras estratégias de sobrevivência – ou, no mínimo, uma forma rápida de ganhar dinheiro em um mundo onde é cada vez mais difícil se destacar dentro do mercado de trabalho. Para influenciadores que chegam a ganhar mais de 250 reais a hora sem sair de casa, pode, de fato, ser uma fonte de renda rápida e cômoda. Mas nem por isso ela deixa de ser exaustiva. 

Cifrões à parte, o que está em jogo é uma sobrevivência baseada no que os outros ordenam, ou seja, no prazer de outras pessoas. Para a psicanálise (especialmente a abordagem lacaniana), isso é algo natural da formação humana: nós acabamos agindo e construindo nossos modos de ser a partir de demandas alheias. Só que, quando há milhares de pessoas falando o que você deve ser e fazer, podemos cometer o grande equívoco do universo digital: relacionar likes com afeto. Nesse tipo de live, os espectadores têm a possibilidade de comprar uma troca de afeto. 

O que isso tudo quer dizer?

As lives NPC denunciam como, dada alguma liberdade, a procura por afetos em tempos digitais toma medidas cada vez mais drásticas. Em termos psicanalíticos, já somos propensos a nos basear em outras pessoas. No universo virtual isso se amplifica, já que as outras pessoas, no caso, podem ser milhares ou milhões.

Apesar da nova política do TikTok de restringir o alcance dessas lives e incluir avisos sobre o conteúdo com “ações muito repetitivas, não autênticas ou degradantes”, há muita gente interessada em perpetuar o movimento, tanto por parte dos streamers quanto dos espectadores. Há um prazer em ver o outro aceitar sua demanda – a questão é que agora esse “outro”, aos poucos, já se torna uma coisa. Cada vez mais o streamer é afastado do status de  “pessoa”, tornando-se um NPC: um personagem feito para compor a experiência de entretenimento do usuário. No caso, um objeto de prazer para suprir uma demanda da carência típica da era digital.

Lucas Cassoli é psicanalista e pesquisador focado em adolescência e expressão jovem na contemporaneidade. Escreve sobre música e cultura para o Monkeybuzz e trabalha com produção musical.

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