Ficções reais, crônicas de mentira

Psicanalista Roberta D'Albuquerque estreia sua coluna com um olhar sensível e bem-humorado sobre o cotidiano feminino.


Ilustração: Mariana Baptista



Vocês viram aquele vídeo do casal viajando pela primeira vez de avião que anda circulando por aí? Se não, se façam esse favor. Um pouquinho mais de um minuto do puro suco de maravilhamento. Foi a segunda coisa mais bonita que eu vi essa semana. A primeira, foi o e-mail da ELLE me convidando a escrever essa coluna. É com o olho do moço, que diz entre o medinho e a delícia “lá vai ele arrancar os pezinho do chão”, que eu me convido todo dia a enxergar a vida. Com esse mesmo olho que escrevo a partir deste mês ficções reais ou crônicas de mentira. Acabei de virar aqui na rotatória e engatei primeira. Quem vem comigo?

Três trancas tetras

Quando Murilo passou por Camila, os ísquios da moça já iam íntimos da cadeira da sala de espera. Uma cadeira daquelas que conseguem fechar ainda mais o ângulo já doído de 90 graus, como se fosse o encosto a se escorar no corpo de quem senta. Ele a reconheceu pela foto do whatsapp, disse oi, no tom de desculpas pelo atraso, mas ela nem ouviu o oi, nem percebeu quando teve o ombro tocado pelo indicador de Murilo. Passou o crachá pela catraca e negou  com o olhar quando a recepcionista fez menção de chamar a atenção de Camila para o fim da espera. 

Murilo usou o mesmo dedo encamilado para apertar o botão do elevador. Interfonaria do décimo quarto como se já tivesse chegado antes e culparia a recepcionista pelo mal-entendido. Essa trama toda interessava pouquíssimo ou quase nada a Camila. Estava mergulhada em uma outra, que dançava um frevo rasgado na sua cabeça. É a segunda sala de espera de hoje, teve o laboratório, e agora esta. Nos dois cadastros foi fotografada com zero cuidado. A luz branca de escritório, a câmera torta e em movimento na mão da recepcionista, o ângulo de baixo pra cima, e sem um único aviso de clique. 

Foi na foto do relojoeiro, no meio de um bocejo de quem segue em jejum, que ela lembrou de uma propaganda antiga. Era assim, uma mulher, ou talvez fosse um homem, é surpreendida por uma exposição de fotos imensas dos momentos mais importantes de sua vida. Uma sala inteira branca com cara de museu de verdade, uma música melosa e aquele tanto de registro descabelado das pernas finas da meninice, do parto, dos aniversários das crianças, do casamento. Pra Camila, a ideia era a porta do inferno. Quem da sua família teria o olho de edição pra selecionar esse material? Quem da sua família teria a mínima noção pra observar se naquela da formatura ela estava com cara de espanto, ou se na outra do dia da mudança o olho direito parecia maior do que o esquerdo, todas as bocas abertas e dentes tronchos ocupando metros de papel fotográfico nos salões de uma pinacoteca da vida. 

“Isso as fotos de álbum, né? Agora, pensa no acervo de fotos de cadastro que a gente tem espalhadas por São Paulo”, ela dizia pra alguma instância interna que fazia de Camila duas. Imagina juntar essa desgraceira num salão gelado de ar-condicionado. Autor: Rochelle do Edifício Fleming. Título: Olha a cara dessa mulher, fotografia sobre papel, 2020. Autor: Maria Luiza do edifício Palácio Imperial. Título: Não podia ter pelo menos molhado o cabelo antes de sair, fotografia sobre papel, 2022. Se a primeira exposição era a porta do inferno, a outra seria a sala de jantar. Hoje, Camila janta com as filhas, elas prometeram uma surpresa de aniversário. Ligou uma coisa na outra e foi logo puxando um santo anjo do senhor.

Bem na pálpebra trêmula e no arrepio dessa possibilidade, ela ouviu o “dona Camila, pode subir, décimo quarto andar”. No elevador “I can see clearly now” numa versão lentinha de supermercado. Ela procurou o 1401 pro lado errado e, quando encontrou, deu de cara com uma grade que antecedia a porta com três trancas tetras, pensou nos tigres tristes e na piada perdida do quatro ao quadrado, tocou o interfone e ouviu Murilo pedir que repetisse o número do RG para “fins de conferência”. 525514442. Nunca tinha percebido que somente o dois e o um acertaram o número de repetições no documento. “Pode entrar.”

A cadeira que ainda girava na mesa cheia de prateleirinhas de Murilo era, essa sim, desenhada para acomodar como se deve um humano. Ele perguntou pelo relógio sobre o qual tinham falado ao telefone, já estendendo a mão de luvas calçadas, e Camila entregou quase com dó o tesourinho que paquerou por mais de um ano. Se deu todo tipo de desculpa pra adiar essa compra. Pra que relógio? É caro. Isso é antiguidade mesmo? Comprar um negócio que não funciona? E tem que ficar dando corda? Tomou coragem no aniversário de 45, meia idade, hora de começar a contar o tempo. Quando saiu do antiquário que visitava mês sim, mês não, com aquela pontinha de medo de não encontrar o relógio, colocou o mimo no ouvido, pra ver se, na alegria do resgate, os ponteiros animavam um passo. Era o mesmo gesto que Murilo fazia agora. 

Ele sentou na cadeira e convidou Camila a se aproximar. Além da lupa e do foco de luz que cobriam a peça, encaixou uma lupinha menor no olho direito. Um olho maior que o outro, entortou a boca, olhou pra Camila e sorriu com espanto. “É da década de 20, sabia?”, ele disse enquanto dava corda no relógio. Ela achou aquilo tão bonito, é de agora e não é ao mesmo tempo. Igualzinho a Camila. Murilo abriu a caixa do relógio e as muitas gavetinhas cheias de ferramentas, aquele específico do específico que lhe encanta desde a época dos aparelhos da infância. Doía apertar, mas cada vez que o dentista abria uma gavetinha e escolhia como se não houvesse nenhuma outra opção adequada, o alicate X e não o Y, crescia na Camila pequena uma admiração já enorme. “Será que um dia eu terei a mesma certeza sobre qualquer coisa?”

 Murilo ajustou uma micropeça e tic tac, tic tac. Talvez Camila tenha tido uma vontadezinha de chorar. Ele saiu explicando todos os issos e aquilos das engrenagens, da pulseira, da caixa, da corda. E na delicadeza de relojoeiro pediu a sua mão e lhe vestiu a joia. Foi o que ele disse. “É uma joia”.  Desligada a luminária e afastada a lupa, Camila agradeceu. Pensou que essa foto, a dele fechando o relógio no braço dela, embaixo do foco de luz, era uma das que ela editaria para a exposição. Pegou a garantia que Murilo imprimiu, passou o cartão, agradeceu, esperou que ele abrisse cada uma das tetras e voltou para o elevador. Nem sei dizer o que tocava nessa hora. 

Na saída do prédio tentou conferir o horário. Mas o um centímetro e meio de diâmetro do visor do reloginho não combinava com os olhos de 45, teimosamente desacompanhados de um par de óculos. Podia ser meio dia, três da tarde, seis ou nove da noite. Camila não sabia dizer. Pegou o celular pra checar o horário, mas se distraiu com a mensagem que saltou no grupo das filhas: “deu certo o reloginho? pronta pra surpresa já já?” Não vejo a hora.

Roberta D´Albuquerque é psicanalista e co-autora do livro Quem manda aqui sou eu (HarperCollins). Atende no seu consultório em São Paulo e escreve mensalmente neste espaço. Acompanhe em @robertadalbuquerque.

Leia também:
Até parece: família, rock e dilúvios improváveis
Ultraje: Toalhas, pudores e pensamentos num dia quente em São Paulo
Bico pétala anticólica

Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes