Será que a baleia sou eu?

Entre companhias obrigatórias na sala de espera e a solidão dos oceanos.


coluna roberta dalbuquerque
Ilustração: Mariana Baptista



Se eu tivesse garganta boa, engoliria um espelho pra ver o que se passa dentro, engoliria mesmo. Porque às vezes dentro faz tanto barulho. Às vezes é mouco também. Às vezes é oco. Essa semana eu vi o vídeo de um tubarão que engoliu uma câmera subaquática e fiquei repetindo comigo, subaquática, subaquática. Que palavra linda.

Mas minha garganta é ruim desde que eu sou pequena. E já faz duas horas e meia que ganhei a pulseirinha verde da emergência. Minha senha é CLN 722. No painel, CLN 721. Uma ORT, uma RSP e duas PRFs pra cada CLN. CLN é clínica médica, ORT, ortopedia, RSP, doenças respiratórias e PRF, preferencial. Por isso que troquei o Samaritano pelo Santa Catarina, porque lá são 4 PRfs até retomar a fila. Vim só pra pegar uma amoxicilina, mas tem que pagar prenda pra ganhar receita de antibiótico em emergência. Tem que esperar na fila, tem que deixar enfiar cotonete na garganta e ler o resultado do exame que, claro, é inconclusivo. Tem que ouvir a conversa das duas na fileira de trás que agarraram amizade nos primeiros 10 minutos. Como é que as pessoas fazem pra agarrar amizade nos primeiros 10 minutos?

A história quase tão sonora quanto subaquático. Pena que ORT 061 seja talvez a pior contadora de história do mundo. E RSP 092 a pior comentadora. Pulseiras amarelas. As duas. 

ORT 061

– Tem uma baleia que tá perdida desde 89 que fala tão alto que vive sozinha no meio do mundo.

RSP 092

– Caraca, que escandalosa. Bem feito.

Dei google na hora. Existe mesmo. Ela canta a 52 hertz e a frequência das outras baleias só vai até 20. Não é que o volume espante o grupo é que, por ser muito agudo, o som não é compreensível. Tadinha. Não imprime um chamado. – ORT 052, o painel chama – Sabia que elas cantam para chamar companhia? Quase como quem puxa uma conversa. Só que se a gente não consegue chamar, ninguém vem. E se ninguém vem, ninguém vê. Os militares registraram o som em 89, mas não tem nenhuma imagem da bichinha da baleia até hoje. –  Painel RSP 089 – Tive uma pena tão grande. Coitada, falando sozinha. Que tristeza, minha gente. Um bicho enorme daqueles, uma Tetê Espíndola gigante de cauda e nadadeiras, perdida no Pacífico. No Pacífico. Me roubou a paz. Tentem as câmeras subaquáticas, por favor.

Molhei o olho, sequei na barra da camiseta, tadinha da baleia, tranquei  o nariz que eu não vou ficar chorando aqui no meio do hospital, mas o mar deve ser tão frio, tudo emendado numa tosse que eu nem queria tossir, vai doer, será que é escuro?, um ouvido entope e no outro começa o zumbido. – Painel PRF 134 – Pronto. A partir daqui é tudo convite agudo, não escuto mais nada. 

Será que é um problema de garganta? Será que ela engoliu alguma coisa que saiu rasgando tudo que é oco do caminho, uma dose de cerol de 8 em 8 horas? Será que é enorme, mas tão enorme, que não tem no mundo amoxicilina o suficiente pra dar conta? – Painel PRF 135 – Ou será que, ao contrário, é bem pequenininha, micra mesmo, um bebê peixinho de aquário e aí o Pacífico sou eu. Aquela coisa remexida, o barulho, o silêncio e oco, aquela coisa que não tem espelho que veja, será que é uma baleia bebê peixe de aquário gritando pra ninguém ouvir dentro de mim? Por favor, tentem as câmeras do endoscópio. 

Painel CLN 722 – Me mandaram pra sala do clínico e de lá pra a do otorrino que cheirava a amigdalite desde a ponta do corredor. Eu senti, mesmo que por meu nariz não passasse nem ar nem brisa. Dr. Carlo abre a porta, camisa e calça azul, cabelo pouco e oleoso, quase pingando,  jaleco mal-bordado, testa marcada pelo fotóforo que descansava na mesa. Pela marca, está nas últimas horas de plantão. Ele resolve tudo sem dizer palavra. Faz que venha com a mão em curva de fora pra dentro do corpo, faz que sente com a mão em reta de cima pra baixo, faz que abra com a boca aberta a menos de 10 cm do meu rosto. Dr. Carlo prefere as obturações de amálgama. Quando acende o otoscópio e o aponta para a minha garganta, a sua, vermelha e com pontinhos de pus, reflete na liga metálica dos dentes. O cheiro era dele. Mas é outro o pronome possessivo que escolhe para me diagnosticar. Nossa, ele diz. Faz que espere com a mão em buzina, dedos pra ele palma pra mim e escreve o que todos os de antes escreveram e todos os depois escreverão: Amoxicilina – 500mg de 8 em 8 horas por 10 dias. Paracetamol, se febre ou dor de 6 em 6. Nem cotonete teve.

Saio, fecho a porta e avanço pelo corredor pra fora do hospital de um fôlego só. Menos de um minuto de consulta pra mais de duas horas de espera. Dr. Carlo deve preferir homeopatia. Já estaria novo se tomasse amoxicilina. Dr. Carlo não deve nem saber da baleia soprano. Dr. Carlo não olhou o meu ouvido. Ele tão afogado quanto eu. Tão entupido quanto a Paulista. Na avenida, o cardume de carros não escuta nada –  homogêneos nas buzinas e na direção dos que iam e dos que vinham. Na porta do Santa Catarina eu e o aplicativo do táxi que até agora não atendeu a meu chamado. Eu, o aplicativo do táxi, o chamado não atendido e o barulho de mar.

Roberta D´Albuquerque é psicanalista e co-autora do livro Quem manda aqui sou eu (HarperCollins). Atende no seu consultório em São Paulo e escreve mensalmente neste espaço. Acompanhe em @robertadalbuquerque.

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