Bob Dylan comenta uma lista de 66 canções em seu novo livro

Em "A filosofia da música moderna", o cantor e Nobel de Literatura analisa músicas de Elvis Presley a Frank Sinatra, em um clube do Bolinha musical.


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Bob Dylan em 1978 Foto: Larry Hulst/Michael Ochs Archives/Getty Images



Único compositor de música popular a receber um Prêmio Nobel de Literatura até hoje, Bob Dylan dedica-se à literatura ligeira em seu livro mais recente, A filosofia da música moderna. Lançado no final de 2022, a publicação acaba de ganhar edição brasileira pela Companhia das Letras.

O termo “filosofia” no título dá pista de um trabalho de fôlego e profundidade, mas não é bem disso que se trata, apesar do número considerável de momentos inspirados e inspiradores do livro. A ideia é simples: sob critérios subjetivos de decifrar, o autor e cantor de clássicos da música folk e do rock’n’roll seleciona 66 canções para comentar em textos geralmente leves e sem maiores pretensões. Dylan se mostra empenhado em entreter, com várias passagens divertidas, embora manifeste nítida preferências pelos chamados “lados B” e por artistas hoje apagados da memória coletiva.

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A capa do no livro de Bob Dylan Foto: Divulgação

A julgar pelo número de citações ao longo do livro, são Elvis Presley e Frank Sinatra os maiores mitos do mito Dylan. Ambos são onipresentes em A filosofia da música moderna, que abrange canções gravadas desde 1924 até 2004, com predileção evidente pela ponta mais distante do fio da história – portanto, por artistas mortos.

Os verbetes do livro em geral se dividem em duas naturezas distintas. Em um deles, inserem-se informações e histórias saborosas sobre a cultura estadunidense, em que vez por outra Dylan solta alguma observação espirituosa e/ou ferina sobre algum colega de profissão. No outro, o autor tece comentários viajandões, em que faz o exercício de se colocar na pele dos personagens das canções.

Curiosamente, nem o rock nem o folk, que pautaram a obra de Dylan, ocupam posição central no cancioneiro reunido no livro. O que predomina é a country music, naturalmente imbricada com o folk, mas em geral mais comercial e com menos pruridos pelo sucesso em grande escala. A filosofia da música moderna é um desfile de testosterona, povoado por filmes western e por caubóis musicais como Johnny Cash, Willie Nelson e ídolos da música caipira de lá que duraram pouco ou nem chegaram a conhecer o sucesso da multidão.

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Dylan na capa do seu sexto álbum de estúdio, lançado em 1965 Foto: Divulgação

A ausência delas

Verdadeiro clube do Bolinha musical, o livro parece denotar que ou não existiram mulheres relevantes na música do século 20 ou Dylan não nutre muito apreço pelas que existiram. Apenas quatro cantoras recebem verbetes próprios: a Broadway-hollywoodiana Judy Garland, a televisiva Rosemary Clooney (em uma canção culinária de inclinação pedófila), a diva do pop Cher (que ganha texto não propriamente elogioso) e a diva do jazz Nina Simone (uma brilhante intérprete da obra de Dylan). Ao longo dos textos, o músico cita ocasionalmente cantoras como Tina Turner e Dionne Warwick e uma compositora solitária, Joni Mitchell. Apenas três verbetes são protagonizados por autoras mulheres (Sharon Sheeley, Cynthia May Carver e uma tal Mrs. Elmer Laird), mas os textos versam apenas sobre os intérpretes masculinos.

Além de brutalmente macho, A filosofia da música moderna é também uma obra autocentrada nos Estados Unidos, quando muito no mundo anglo-saxão. Só escapa à regra a canção italiana “Volare” (1958), classificada como “alucinógena” pelo autor. O nome do Brasil não é citado, embora apareça indiretamente numa menção ao filme francês Orfeu Negro (1959), rodado no Rio de Janeiro ao som da bossa nova, e numa fotografia de Carmen Miranda. A propósito, as ilustrações do livro são um espetáculo à parte, com um conjunto de imagens que alegorizam o que há de mais pop e kitsch na cultura estadunidense. Em tempo: nenhuma canção de Dylan é comentada em nenhuma passagem do livro de Dylan.

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O novo disco de Cat Power em que ela interpreta repertório de Dylan Foto: Divulgação

A influência de Bob Dylan 

Faz sentido o apego literário do compositor de 82 anos pela canção popular que ele mostra no livro, já que foi mais pela literatura das canções que por outras expressões que ele garantiu vários dos prêmios mais prestigiados da cultura estadunidense e mundial, incluindo o Oscar, o Grammy e o Pulitzer. Foi também por intermédio das canções que ele se tornou onipresente no imaginário estadunidense e mundial, regravado incessantemente por uma lista de nomes que vai de Patti Smith a Avril Lavigne, de Jimi Hendrix a Guns N’ Roses.

Dylan começou a atrair atenção no início dos anos de 1960, quando emergiu como autor e intérprete de canções de tradição folk com letras engajadas e caudalosas, de início reinterpretando material folclórico, pouco a pouco se firmando como autor e formulador de imagens poéticas de grande impacto. Em meados da década de 1960, defrontado com o sucesso espetacular dos roqueiros britânicos que dominavam as paradas de sucessos, como os Beatles e os Rolling Stones, ele deu uma forte guinada rumo ao rock, irritando seus pares tradicionalistas do folk ao aderir à guitarra elétrica.

As demonstrações de que a influência de Dylan escorre pelas décadas e atinge o presente não se restringem aos prêmios conquistados nestes anos 2000. Apenas para citar dois casos bastante atuais, a cantora e compositora Cat Power recriou, em show e álbum ao vivo, uma legendária apresentação de Bob Dylan em Manchester, mas atribuída ao Royal Albert Hall, em Londres. E o ator Timothée Chalamet interpretará o muso inspirador numa cinebiografia dirigida por James Mangold (de Ford vs Ferrari).

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