Em 2021, moda para vestir
Depois de quase um ano de experimentações audiovisuais, um pouco mais de roupa nos desfiles e semanas de moda online é muito bem-vindo.
Com o recrudescimento da pandemia de Covid-19 e com parte da Europa em um novo lockdown, tudo indica que as próximas semanas de moda seguirão em formato digital. Nada oficial ainda, mas difícil acreditar no contrário. E já que os desfiles online devem continuar por um bom tempo, vale se aprofundar um pouco mais nos seus conteúdos.
Ao longo de 2020, vimos bastantes experimentações nesse sentido. Teve quem fizesse vídeo dos sonhos, com figuras míticas e mood 100% escapista (enquanto a realidade pegava fogo, literalmente). Teve quem preferiu mostrar mais dos bastidores (Maison Margiela), quem optou por conversar com o público (Prada), quem decidiu fazer um festival virtual (Gucci) e quem olhou para a China, já minimamente controlada e segura, para garantir melhor resultado nas vendas e engajar o público local (Louis Vuitton e Dior Homme).
Aqui no Brasil, um contexto econômico e político bem diferente deixava o cenário um tanto mais complicado. Faltou – e falta – investimento, matéria-prima, tecido, aviamento e gente disposta a consumir localmente (apesar dos discursos engajados do começo da quarentena). São Paulo Fashion Week e a Casa de Criadores quase não aconteceram. As edições do primeiro semestre foram canceladas e uma versão online foi organizada entre outubro e novembro, respectivamente, e com uma notável ausência de grandes marcas.
Quem participou foram grifes independentes, comandadas por jovens estilistas, desde sempre comprometidos com uma moda mais responsável e com algum sentido para o mundo de hoje. O que explica os discursos engajados e urgentes de algumas apresentações. E assim como nas fashion weeks internacionais, os resultados e formatos variaram bastante por aqui. De passarelas filmadas a criações de roupas e cenários em 3D até versões híbridas com documentários.
Porém, terminadas as temporadas – e o ano – ficam as perguntas: O que queremos ver de verdade? O que prende nossa atenção? O que nos emociona? O que nos desperta desejo? O que queremos comprar? O que vestir?
Quase ninguém conseguiu responder tudo em um único vídeo de poucos (ou tantos) minutos. Nem nós mesmos, olhando aqui do outro lado. Não sabíamos se estávamos assistindo a um desfile, a um documentário, a uma vídeo-performance ou a um curta metragem. Não tínhamos certeza sobre o que analisar. Falamos do roteiro, da tecnologia, da edição, da narrativa, da mensagem. Falamos de um tudo. Quase nunca da roupa. Até porque elas quase não apareceram. Ficaram em segundo plano, elemento de cena, figurino, mera justifica para estar numa semana de moda. E aí começa nossa discussão de fato.
Em 2004, o estilista Jum Nakao realizou uma das apresentações mais memoráveis (e comentadas mundo afora) da moda brasileira: uma coleção inteira de papel, toda rasgada ao final do desfile. A mensagem é clara e potente: fala do tempo, das efemérides, principalmente das apresentadas sobre passarelas. Aquelas roupas, contudo, nunca foram vestidas após a temporada de verão 2005 da SPFW, salvo por manequins de museus e algumas poucas modelos em ocasiões igualmente expositivas.
Em uma crítica controversa no jornal Folha de S. Paulo, a jornalista e colunista de ELLE Erika Palomino escreveu: “Jum Nakao viria a seguir, fazendo seu público esperar 45 minutos para ver uma performance de moda, com as modelos de malhas inteiriças pretas vestindo roupas de papel.” Note aí a palavra performance no lugar de desfile, mas continuando: “Este não é um bom momento para abordagens conceituais e manifestos, muito menos na SPFW, um evento focado no mercado e que orienta o varejo. Numa galeria de arte ou galpão, tudo bem. Jum tem muito o que mostrar, como estilista de roupas de verdade.”
Corta para 2020, com muita marca à beira da falência, também não seria um bom momento para vídeos-performance com difícil visualização das peças, por mais contundentes e relevantes que sejam as mensagens. Pelo menos não dentro de uma semana de moda. São expressões culturais importantes e podem refletir o tempo, a realidade ou qualquer coisa de agora tanto quanto uma fila de modelos indo e vindo. Mas aí é outra coisa, né? Performance, arte…
Já falamos repetidas vezes que moda não é sobre roupa. E não é mesmo. Pelo menos não quando pensamos nelas inseridas em contextos sociais e cotidianos. O que vestimos diz muito sobre quem somos, quem queremos ser e o espaço que ocupamos no mundo. Nada disso é novidade. Moda é linguagem e nossas vestimentas são ferramentas para a construção de uma narrativa, de uma identidade, de uma mensagem. Isso é a vida, é o mundo. Já um desfile… Dá para falar em desfile sem roupa?
Jum Nakao pelo menos tinha algumas de papel. Não puderam ser usadas posteriormente, mas ainda eram roupas. O que vemos numa semana de alta-costura, por exemplo, e até nas de prêt-à-porter chegar ao guarda-roupa de pouquíssimos ainda assim são roupas. E roupas que inspiram, com imagens que encontram mil interpretações possíveis para realidade de cada um. Agora, é difícil se imaginar vestindo determinada peça ou um look todo sem o ver antes. Ou até pensar numa variação de acordo com seu próprio estilo e identidade.
2020 foi um ano caótico, confuso e com mensagens mil, não raramente contraditórias. Era difícil falar e vender roupa enquanto milhares de pessoas adoeciam e perdiam suas vidas. Como conscientizar seu cliente a pagar mais por uma blusa feita de maneira responsável social e ambientalmente, quando o salário de muita gente caiu pela metade, quando não desapareceu completamente?
A solução foi falar e produzir/vender menos – até por uma questão financeira, prática e logística de muita empresa de moda brasileira. Reforçar o discurso, enaltecer valores, firmar princípios. E que bom. Precisamos mesmo de tudo isso. Porém, conforme o tempo passa, a solução não chega e a realidade se transforma, a mensagem enfraquece. Sem onde se concretizar, viram palavras vazias, apenas boas intenções.
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As redes sociais, salvadoras de muita marca no começo da quarentena, agora parecem mais pesar do que ajudar. Não à toa, começamos a ver algumas marcas questionando a real eficácia de todo aquele engajamento, diálogo e suposta proximidade. Vivemos em tempos superimagéticos, mas moda é essencialmente material. Consumimos imagens e as concretizamos no que podemos tocar, incorporar, vestir.
A pandemia deixou latente uma série de urgências sociais, econômicas, políticas e culturais. É natural e necessário tudo ou parte disso transparecer no processo criativo e no produto final. Desde que haja um produto final. E se queremos ver uma moda com mais sentido, responsabilidade e criatividade dando certo, precisamos de roupas para que isso se torne viável, se torne real.
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