Semana de moda de Milão: Prada decodificada
Em tempos de superexposição e fiscalização constante da vida alheia, a coleção de verão 2023 de Miuccia Prada e Raf Simons propõe uma alternativa.
Apesar do imediatismo e individualidade dos tempos atuais, é conveniente pensar de outras maneiras. É mais fácil, cômodo até, tentar adequar tudo ao passo e conformes do momento. O que se faz e o que se espera. Mas não é muito elucidativo, não muda nada ou questiona coisa alguma.
Verdade seja dita: o match que todos celebraram, o casal que todo mundo shippou não estourou tanto quanto se esperava. Meio envergonhados, muita gente (este que vos escreve inclusive) não anda entusiasmada com o que os codiretores criativos Miuccia Prada e Raf Simons vem apresentando.
Às vezes, rola um esforço semiótico e teórico para validar ou dar sentido a coisas tão banais quanto um conjunto de bermuda e regata de couro, como no na coleção de verão 2023 masculino. Agora, porém, na coleção de verão feminina, as coisas não são tão simples assim.
A coleção não é fácil. Comercialmente principalmente. As peças com estampas com efeito tipo tie-dye, os blazers, os sapatos mary jane e os vestidos acetinados ou pretos com volumes e dobraduras meio amassadas não devem desapontar nas araras, mas o saldo geral é um tanto mais complexo. Tem até roupa de papel, lingeries tão delicadas que parecem se desfazer.
E tudo, absolutamente tudo, faz parte de uma narrativa que vem se construindo há algum tempo.
Faz algumas temporadas que Miuccia e Raf vêm explorando a maneira como as pessoas se expressam, se inserem e se relacionam socialmente por meio das roupas. Já falaram de questões lúdicas e infantis, de sensualidade e desejos, de uniformes de trabalhos. Agora, na coleção de verão, eles chegam num buraco mais embaixo, que mistura tudo isso com as obrigações e expectativas sociais – das redes inclusive.
Desfile da coleção de verão 2023 da Prada, na Milan Fashion Week Foto: Getty Images
O cenário desse desfile de moda era como um panóptico de papel preto, uma estrutura central com observação irrestrita de seu entorno. No caso, o entorno eram pequenas aberturas ou janelas com curtas metragens do diretor Nicolas Winding Refn, de Drive, sobre cenas cotidianas. Era quase como um pip show ou janelas indiscretas. Os filmes, é importante dizer, eram ambientados em cozinhas, banheiros e quartos, cômodos dos mais íntimos.
No famigerado release, que todo mundo gosta de mencionar, o duo criativo fala do impacto da realidade humana sobre as roupas. Como os hábitos marcam tecidos, definem silhuetas e delimitam seus usos. O underwear usado por fora, a alfaiataria como segunda pele e mais outras subversões e pegadinhas para quem não quer descer para pixxxta.
Em um vídeo com Raf Simons e Nicolas Winding Refn, Miuccia fala sobre a ideia difícil de “ampliar a conversa, saber mais sobre as opiniões das pessoas”. O cineasta continua, diz que temos uma realidade que não podemos analisá-la. Ninguém quer desviar do que os olhos vêem – e do que os agradam. Para a estilista italiana, só roupas boas já não bastam. É preciso entrar numa discussão de relevância social que nem sempre é verdadeira. “É tudo pop”, comenta, sobre a espetacularização da moda.
Apesar do mise-en-scène, não dá pra dizer que a apresentação é exatamente um show – por mais que se valha de um tanto de elementos da indústria do entretenimento. As roupas tampouco contribuem para tal percepção, a ausência de decoração é marcante e o design, reduzido a mais pura simplicidade. Tudo meio próximo do corpo, quando não colado nele, vide as tão faladas calças skinny (será que voltam?).
Desfile da coleção de verão 2023 da Prada, na Milan Fashion Week Foto: Getty Images
Nesta temporada, estamos falando – de novo – sobre corpos, sensualidade, desejos e um tipo de erotismo. Mas sob qual ponto de vista? Os casacos e penhoares fechados a pulso firme pelas modelos (um clássico de Raf), transmitem um certo medo, uma vontade contrariada de se fechar, se preservar. Os looks transparentes sobre macacões de alfaiataria não são exatamente uma janela para a real intimidade, para a pele que se habita de verdade. É fantasia ou proteção? O que é você e o que é personagem?
No próximo domingo, 25.09, a Itália terá eleições gerais para primeiro-ministro. A principal candidata, que deve levar a maioria dos votos, é Giorgia Meloni, possível primeira política de extrema direita a assumir o parlamento italiano desde Mussolini. Como se sabe, um dos hobbies favoritos dos conservadores é fiscalizar a intimidade alheia. O corpo e as práticas sexuais idem. No meio digital, também não é raro o policiamento para garantir conteúdos “inofensivos”. Muita gente protesta nas internet, mas até onde a “lacração” foge da lógica, vai além da autovalidação e do engajamento digital? Como fica no íntimo, onde ninguém vê?
Desfile da coleção de verão 2023 da Prada, na Milan Fashion Week Foto: Getty Images
Naquele mesmo vídeo, o trio fala ainda sobre falhas. Como elas são necessárias e ao mesmo tempo temidas e subestimadas. Na coleção de verão, muitas peças vêm com acabamento desfiado, estampas com aparência de não finalizadas, roupas que não foram devidamente passadas.
Com cartela apagada, quase toda de cinzas, brancos e pretos, o verão 2023 da Prada não salta aos olhos. Não tem produtos prontos para viralizarem, como a regata branca de quase mil dólares que boa parte dos convidados usava. Mas nos lembra que, de vez em quando, é bom pensar um pouco diferente. E se vestir também.
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