Virginie Viard, a mulher mais importante para a Chanel além da própria Chanel, deixa a marca
Enquanto as redes sociais se dividiram entre fãs e haters da sucessora de Lagerfeld, Virginie Viard construiu um legado mais interessado em saber: você gosta mesmo de Chanel?
Antes que pedras sejam atiradas: a afirmação do título é do próprio Karl Lagerfeld. Ele foi o mestre de Virginie Viard, 62, por 32 anos a fio – isso mesmo, a estilista passou mais da metade de sua vida com o Kaiser.
A fala está na série documental Reta Final, da Netflix (2018). No episódio com os bastidores da coleção de alta-costura de verão 2018 da Chanel, o couturier explica quem é a mulher influente no ateliê e completamente desconhecida do público.
“É a pessoa mais importante não só para mim, mas para todo o ateliê Chanel. Virginie é o meu braço direito e esquerdo”, ele explica, enquanto ela escolhe as peças que cada modelo vai desfilar naquela estação.
Virginie e Karl durante apresentação de verão 2019 da Chanel. Foto: Getty Images
Por razões como essa, o comunicado da Chanel dessa quarta-feira, 5.06, pegou boa parte da indústria de surpresa. Após mais de três décadas na Chanel e cinco anos como diretora artística da marca, sucedendo a Lagerfeld depois de sua morte, Virginie Viard deixa a grife francesa.
“Chanel confirma a saída de Virginie Viard após uma rica colaboração como diretora artística, em que ela conseguiu renovar os códigos da casa respeitando a herança criativa da marca”, afirma a empresa.
Vale dizer que, em entrevista recente, no final do mês de maio, Leena Nair e Philippe Blondiaux, respectivamente CEO e CFO da casa, afirmaram estar satisfeitos com a trajetória construída por Virginie até então.
Segundo a dupla, o sucesso da estilista se traduz em números, como as receitas que cresceram 16% no último ano e as vendas que aumentaram 14% no quarto trimestre de 2023. A Chanel, segunda maior etiqueta de luxo que existe, um negócio avaliado em cerca de 20 bilhões de dólares, viu ainda o seu prêt-à-porter crescer 23%, durante a era Virginie.
Modelos do cruise 2021 da Chanel. Foto: Getty Images
Ainda não existem informações oficiais sobre o motivo de sua saída, mas o legado da estilista fala por si. Nascida em Lyon, na França, Virginie é neta de fabricantes de seda e estudou moda com especialização em teatro e cinema. Foi um funcionário do Príncipe Rainier III de Mônaco, um vizinho de sua família, o responsável por apresentá-la a Lagerfeld.
Assim, a então assistente da figurinista de filmes Dominique Borg passou a estagiar na área de bordados de alta-costura da Chanel, em 1987. E nascia ali uma relação íntima de Virginie com Karl Lagerfeld, que se estenderia por décadas.
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Em 1992, ela migrou por cinco anos com o mestre para a Chloé. Acontece que o alemão, que já havia desenhado para a marca francesa de 1963 a 1983, voltou a colaborar com a casa na década de 1990. Em 1997, Virginie estava de volta a Chanel, agora, como coordenadora da alta-costura, até assumir a direção de todo o estúdio de design da Maison, na virada do milênio.
De forma prática, Virginie traduzia os croquis de Karl para os artesãos construírem os sonhos dele em roupa. Geralmente vestida em jeans, blazer e com os cabelos soltos, ela se tornou um dos pilares fundamentais de uma das marcas de moda mais influentes do mundo, mas com um perfil extremamente discreto.
Detalhe do cruise 2024 da Chanel. Foto: Getty Images
Poucos sabiam, por exemplo, quem era a mulher que, em dezembro de 2018, ao final da apresentação de Métiers d’Art da Chanel, desfilada no Metropolitan Museum, em Nova York, entrou com Karl Lagerfeld para receber os aplausos finais. Em janeiro de 2019, quando o Kaiser já não podia mais comparecer ao final do desfile de alta-costura, foi a discípula quem o representou.
Eis que, no dia 19 de fevereiro de 2019, o mundo da moda não só recebeu a confirmação da morte de Karl como imediatamente descobriu o seu sucessor: Virginie Viard. No misto de sentimentos que configura a perda de um amigo, o alcance de um dos maiores feitos da carreira e o desafio de seguir um dos legados mais desafiadores do mercado, Virginie passou a comandar as coleções de alta-costura, prêt-à-porter e acessórios da Chanel.
Nomeada por Alain Wertheimer, o presidente da grife, ela recebeu já na espécie de carta de coroação o objetivo do seu novo trabalho: levar adiante os legados da fundadora, Gabrielle, e também do estilista que mais tempo ficou à frente da marca, Karl. Adicione a isso o nada leve detalhe de que Virginie se tornava a primeira estilista mulher nesta posição, desde a própria Chanel.
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As redes sociais, com os seus perfis cheios de olhos, dedos e opiniões, fizeram questão de observá-la com lupa. E, ainda assim, Virginie fez uma transição de estilo notável, de forma leve, nada agressiva, respeitando os legados de Gabrielle, Karl e, hoje, olhando com um pouco mais de cuidado, até mesmo dos seus próprios desejos.
Modelos na passarela de inverno 2022 da Chanel. Foto: Getty Images
No primeiro desfile sozinha na direção da marca, o cruise de 2020, colocou a modelo Ola Rudnicka para fechar a apresentação com um vestido preto de golas brancas altas, uma clara alusão ao traje-uniforme do antecessor.
Interessante notar, no entanto, o cenário escolhido. Uma estação ferroviária no estilo art-déco foi construída dentro do Grand Palais, com os nomes das cidades em que a Chanel desfilou e como um dia bem desejou Lagerfeld.
Só que não havia trem. Karl Lagerfeld certamente teria construído um trem soltando fumaça, se movimentando como em um filme hollywoodiano. Virginie se contentou com bancos oliva retrô para as suas garotas em conjuntinhos de tweed circularem ao redor.
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Difícil não pensar em um leve atrevimento também, quando, na coleção de alta-costura do verão 2023, ela colocou esculturas lúdicas de papelão e madeira em formatos de animais na passarela. Gostoso pensar que, apesar do respeito pelo professor, Virginie fez Lagerfeld revirar no túmulo com um cenário de material reciclado, assinado pelo artista Xavier Veilhan.
Afinal, foi o seu respeito pela casa que marcou sua trajetória. Em seu primeiro Métiers D’Art, o tal desfile de final de ano, em que a Chanel lembra seu savoir faire, colocando à prova os feitos de sua seleção de ateliês, Virginie reconstruiu a histórica loja 31 da Rue Cambon, com sua escadaria espelhada e lustres fantásticos.
Virginie Viard ao final da apresentação de cruise 2024 da Chanel, em Marselha. Foto: Getty Images
No cruise 2022, lembrou da relação de longa data entre Chanel e Mônaco. Lá, Gabrielle abriu uma de suas primeiras butiques e construiu, em 1929, a mansão La Pausa. No inverno 2024, o tributo foi a Deauville, local onde Gabrielle passou a criar roupas esportivas e de modelagem emprestada do guarda-roupa masculino, os feitos que a destacaram no começo do século 20.
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Virginie revirou o sentido da lupa para os códigos valiosos da marca, como a cidade de Paris, as camélias, o balé, o teatro e o jeitão effortless chic da garota Chanel, que é tão luxuosa como é também “sem tempo, irmão” – ou deveria ser, se pensássemos na energia de Gabrielle.
“Se Lagerfeld foi um estilista para quem ama moda, Virginie é uma estilista para quem gosta de Chanel.”
A contribuição mais notável de Virginie provavelmente é essa. Com coleções coesas, ela acenou para o eterno frescor que um dia impulsionou a fundadora a criar essa casa. Esteve sempre lá uma faísca de rebeldia forrada de delicadeza que, se não contemplava a Mademoiselle, ao menos correspondia com a sua própria identidade: Virginie viveu em Londres no auge do movimento Punk e adora um detalhe rock and roll.
Modelo na apresentação de cruise 2024 da Chanel, o último resort de Virginie.. Foto: Getty Images
Com simplicidade e sutileza na imagem total, persistiu em um jeito de vestir menos dado a likes e que traz um aspecto humano para a coisa toda. Ou melhor, uma conversa mais sincera com as mulheres. Se Lagerfeld foi um estilista para quem ama moda, Virginie é uma estilista para quem gosta de Chanel.
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O sucessor de Virginie ainda é uma grande dúvida. A Maison afirmou apenas que “uma nova organização criativa será anunciada oportunamente” e que a apresentação da coleção de alta-costura de inverno 2024 seguirá, assim como planejada, no próximo dia 25 de junho, na Ópera Garnier, em Paris.
Para o cargo, alguns apostam em Pierpaolo Piccioli, o disponível, uma vez que o impressionante designer que elevou a alta-costura da Valentino saiu da marca italiana em março deste ano. Slimane, o chique e abusado, é um boato que nasceu em 2017 e se arrasta até hoje, mesmo ele estando firme e forte na sua Celine sem acento. Sarah Burton, equilibrada e perfeccionista, é a pedida de quem não quer ver o brilho da Chanel se arrefecer e de quem também ficou órfão de sua elegância, desde que ela saiu da Alexander McQueen, no final do ano passado.
Fato certo é que provavelmente vem olhar estrangeiro por aí, porque dificilmente alguém tão Chanel quanto Virginie Viard há de aparecer – foi Karl Lagerfeld quem disse!!!
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