A sapatilha está prestes a se tornar uma sensação outra vez
Talvez nem todos estejam de acordo com o seu renascimento. No entanto, o sapato parece recuperar a sua atenção, provando que ainda há um longo caminho a percorrer.
Há mais de uma década, os podólogos alertam contra ela. No fim dos anos 2010, a imprensa especializada a substituiu oficialmente pelos chamados dad sneakers. Até poucos meses atrás, a sua mera existência seria o suficiente para justificar dissertações odiosas por toda a internet. Nada disso, porém, impediu que a moda direcionasse os holofotes sob a sapatilha de ballet outra vez. Em uma reviravolta, o sapato parece agora superar as críticas ー e não é difícil entender o porquê.
Há séculos, existe uma espécie de fascínio em torno das bailarinas, desde a corte do rei Luís XIV até o clipe de “brutal” de Olivia Rodrigo. No entanto, as roupas e acessórios da dança não costumavam viver grandes interações com a moda. Pelo menos, não até 1940. Foi por volta desse período que, com o surgimento do ballet moderno, a sua moeda cultural se tornou forte ao ponto de estilistas de todo o mundo adotarem para fora do palco o léxico do tutu, corpetes e, claro, sapatilhas.
Diz a lenda que a pioneira tenha sido Rose Repetto. A costureira e mãe do primeiro bailarino da Ópera de Paris, Roland Petit, confeccionou uma sapatilha a pedido de seu filho para minimizar o desconforto que as outras causavam. Os colegas do garoto se interessaram e logo a empresa já estava montada. A técnica criada por Rose, cousu retourne, que consistia em costurar a sola de dentro pra fora, passou a ser replicada por todos, de Claire McCardell, que lançou o calçado em tecidos combinados aos das roupas, até Coco Chanel e Christian Dior.
Kate Moss, em Londres, em 2005.Foto: Getty Images
Embora na época o sapato tenha sido adotado por Brigitte Bardot, Twiggy e Audrey Hepburn, as lembranças mais fervorosas no imaginário coletivo remontam ao fim dos anos 2000 e início dos 2010. Ali, era comum que pesquisadores de tendências examinassem minuciosamente os visuais escolhidos por nomes como Kate Moss e Sienna Miller. Quando elas surgiram nas ruas vestindo calça jeans skinny, regata e sapatilha, o mundo parou para observar e admirar os seus calçados.
Pelo olhar leigo, que os comparava com o salto alto, elas eram tidas como confortáveis. Costumavam ser fáceis de tirar e colocar. Estavam posicionadas no ponto médio entre o casual e o sofisticado, podendo ser usadas em toda e qualquer ocasião. À primeira vista, só vantagens. Logo, não demorou para que a sapatilha se tornasse um clássico no cotidiano de todas, das atrizes de Gossip Girl até as mães multi-funções da vida real.
Você poderia encontrar o sapato em uma loja de grife ou em uma rede de departamento. Feito de um couro macio e flexível ou com a adição de um laço chamativo. Havia um par para todos os gostos e orçamentos. Por onde quer que fosse, haveria uma imensidão de mulheres com elas nos pés. É justo esse movimento, porém, que representa o início de seu fim. Ao redor de todo o globo, as vendas dispararam ao ponto de gigantes do varejo passarem a vender sapatilhas empilhadas em espécies de kits. Eram oferecidas quase como se fossem meias.
Sapatilhas à venda, em Barcelona.Foto: Getty Images
É aí que o brilho de seu apogeu foi sendo apagado. Enquanto o sapato já não parecia mais uma novidade quente, outros iam surgindo contemplando as suas funções e o deixando para trás. O curioso, porém, é que diferente de outras peças que cumprem o mesmo ciclo de tendências, o declínio da sapatilha foi acompanhado por um ódio coletivo que insistia em colocá-la em um lugar de constrangimento.
Elitismo? Inegavelmente. A partir do momento que se tornou um item acessível a todas, esse foi o fator número um para que o calçado não fosse mais digno do suposto prestígio social, como já bem explicado aqui. Mas também havia a pretensão da juventude que não queria ー e nunca quis ー usar as mesmas peças escolhidas por sua mãe e avó. E ainda o cansaço generalizado de uma moda que, em um ciclo vicioso, clama pela próxima grande descoberta.
Nesse caso, a tal descoberta foi os ugly shoes. Batendo de frente com o minimalismo polido e feminino das sapatilhas, sapatos de gostos duvidosos e solados grosseiros imergiram na moda em um movimento encabeçado por Phoebe Philo, na Céline, e logo após por Demna Gvasalia, na Balenciaga. Ali, era a conta do tédio coletivo chegando. À medida que a homogeneização dos calçados operava em alta velocidade, havia o anseio desesperado de, ao menos, tentar ser único para não ser condenado ao ostracismo moderno.
Até que a roda girou outra vez. Hoje, abra qualquer rede social e você irá se deparar com o maior fenômeno do Pinterest, Matilda Djerf, calçando sapatilhas pontudas, assim como Lily-Rose Depp, apostando na opção de salto-alto da Repetto, e Zoe Kravitz, escolhendo a aveludada da The Row. Ainda haverá Harry Styles na capa de seu último álbum, Harry’s House, usando a sapatilha de amarração no tornozelo lançada por Molly Goddard em numerações que atendem aos homens e às mulheres.
Molly Goddard, verão 2022.Foto: Divulgação
Valentino, inverno 2022 de alta-costura.Foto: Divulgação
Simone Rocha, verão 2022.Foto: Divulgação
Alguns podem argumentar que o sapato nunca tenha sido inteiramente abandonado. E eles estão certos. Mesmo entre críticas, ele continuou sendo um escudeiro fiel e legítimo para inúmeras mulheres. No entanto, para outras, havia se tornado uma opção chata ou, no mínimo, óbvia demais. Já não era mais o calçado onipresente de antes. Justamente por isso, é difícil ignorar o seu novo aumento de popularidade. Ainda mais quando o movimento introduz ajustes contemporâneos às sapatilhas.
Repare que, entre as opções escolhidas recentemente pelas personalidades citadas acima, há sempre um benefício adicional agregado ao sapato. Nas passarelas, não é muito diferente. No inverno 2022 da Miu Miu, a sapatilha surgiu acetinada em um styling acompanhado por meias. Já em Simone Rocha, pareceu evocar a energia das bonecas vitorianas. Para a Valentino, em sua alta-costura, foi tudo sobre tornozelos preenchidos, seja por plumas ou rosas. Na Maison Margiela, os dedos divididos das botas Tabi têm sido aplicados em sapatilhas superplanas.
Entre as várias adaptações, o ressurgimento parece referenciar mais as bailarinas dos anos 1940 e menos a imagem observada na década passada. No entanto, tratar a sapatilha como uma mera tendência não parece certo. Entre picos e quedas naturais de atenção, o sapato se tornou um grampo permanente do guarda-roupa ao qual sempre poderemos voltar.
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