Verão 2026 reflete ausência do olhar feminino – ou, pelo menos, uma perspectiva sensível a elas
Vestidos presos pelos mamilos, nudez masculina sobreposta à feminina e roupas que limitam o movimento delas confirmam a falta de representatividade.
Quando uma intensa dança das cadeiras nas direções criativas de etiquetas de luxo começou a tomar forma, em 2024, a discussão sobre a ausência de mulheres nas contratações dos principais cargos artísticos dessas empresas ganhou força. A cada anúncio, mais um homem – geralmente, branco – era indicado para tomar conta das principais casas de moda. Um ano depois, na temporada de verão 2026, encerrada na segunda-feira (06.10), grande parte desses estilistas fez sua estreia. O resultado não surpreende, não é nenhuma novidade, mas vale ser destacado: o olhar feminino fez falta. E as passarelas deixam claro esse vazio de perspectivas.

Jean Paul Gaultier, verão 2026. Foto: Divulgação
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Algumas apresentações evidenciam mais isso, como a de Duran Lantink para a Jean Paul Gaultier. Chamado por alguns como o novo enfant terrible da moda parisiense, fazendo referência ao apelido dado ao fundador da maison, o holandês parece não fazer jus ao posto que assumiu. O icônico sutiã cônico veio em versão caolha, enquanto as calcinhas desajustadas mal cobriam as virilhas – algumas peças não vestiam bem nem mesmo as modelos que estão mais magras a cada temporada.
Em um dos visuais, havia um macacão justo impresso com a imagem realista de um corpo masculino – pelos e pênis incluídos. A peça resgata o bodysuit apresentado pela maison no verão 1992. A versão do passado tinha os seios e a vulva destacados por bordados com cristais. A nudez feminina sempre foi proibida, fetichizada, objetificada, principalmente no século passado. Enquanto isso, a masculina é naturalizada e incentivada. Qual o sentido, então, de exaltar a segunda? E mais: de igualar as duas, como se seus tratamentos na sociedade fossem equivalentes?
Em entrevista ao portal Business of Fashion, Duran Lantink diz não ter mergulhado nos arquivos da casa antes de sua estreia e se nota. A coleção trazia referências óbvias ao legado de Gaultier, mas deixou de lado um dos pilares mais consistentes de sua obra: a celebração da mulher. Em diversos momentos, o designer contribuiu para afirmar a noção de uma sexualidade feminina livre, principalmente em seu diálogo com Madonna. Mesmo em suas propostas mais fantasiosas, esse olhar nunca esteve ausente.

Mugler, verão 2026. Foto: Getty Images
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Miguel Castro Freitas compartilha com Lantink não apenas a estreia, mas também a herança de peso: assumir a maison de Thierry Mugler, outro gigante da moda francesa. Seu primeiro desfile em Paris abusou de códigos de poder que marcaram época – ombros estruturados, cinturas baixíssimas e silhuetas agressivas, radicais. O problema é que, novamente, o mundo mudou, assim como os desejos das mulheres. E a coleção pareceu ignorar isso. A entrada 36 ilustra bem: o vestido bege bordado era preso no piercing dos mamilos da modelo. O conceito falha no essencial: reconhecer que há um corpo real ali que, com uma peça de roupa pendurada em seus seios, fica vulnerável a ser ferido.
Mais uma coincidência desconfortável: assim como Gaultier, Mugler sempre foi um amante do corpo feminino e da sua força. Em suas mãos, esse fascínio se traduzia em potência. Já nas de seus sucessores, parece resvalar em descuido – e, para ser sincera, em um certo mau gosto e desconexão com a realidade.
As melhores coleções do verão 2026 não são apenas aquelas assinadas por mulheres (embora algumas estejam entre elas), mas sim as que partem de um entendimento de que pessoas vão vestir aquelas roupas. São propostas que reconhecem o corpo como sujeito e não como objeto de espetáculo, peças que não só consideram a beleza, mas também a funcionalidade. Moda não deve punir ou restringir o corpo, como nas calças-macacões (difíceis até de descrever) da Alaïa.

Alaïa, verão 2026. Foto: Divulgação
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Na estreia de Louise Trotter na Bottega Veneta, os casacos em intrecciato aparecem em versões minimizadas e maleáveis, suavizando a tradição artesanal da casa. Já na segunda coleção de Sarah Burton para a Givenchy, a lingerie assumiu protagonismo não como ferramenta de sexualização, mas como expressão de liberdade. Na Calvin Klein, Veronica Leoni propôs frentes-únicas e vestidos drapeados que desenham uma mulher mais confiante e abertamente sensual.
Esse ponto de vista, porém, não é exclusivo das estreias nas etiquetas comandadas por diretoras criativas. Veja a Chanel de Matthieu Blazy: camisas criadas pelo ateliê Charvet, o favorito de Gabrielle Chanel, ganharam uma corrente oculta na barra – o mesmo recurso usado nos casaquetos de tweed da maison – para manter o caimento perfeito ao longo do dia. Na Dior, Jonathan Anderson apresentou minissaias jeans combinadas a blazers de construção escultural, compondo um guarda-roupa pensado para ser vivido e sentido, não apenas fotografado. Isso, sem deixar de lado o lugar de espetáculo e de sonho que a moda se propõe a ocupar. Já na Jil Sander, comandada agora por Simone Bellotti, a sensualidade vem no detalhe de um rasgo ou recorte ocasional. Nada que atrapalhe a funcionalidade ou restrinja o movimento. Nós já falamos sobre essas coleções nas críticas de cada desfile.
Quando o olhar feminino – ou, pelo menos, um olhar sensível à mulher – está presente, a moda se torna mais possível, mais conectada ao espírito do tempo. E essa é a forma mais relevante de se pensar em uma coleção atualmente.

Givenchy, verão 2026. Foto: Divulgação
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